O grupo terrorista “Estado Islâmico” tem muitos nomes: na imprensa brasileira, há uma salada de siglas – os jornais usam EI; EII; EIIL; ou EIIS. Telejornais brasileiros (e a presidente Dilma Rousseff) dizem “ISIS“. Barack Obama chama-os “ISIL” (pronunciado “Áicel”), mas seu secretário de Estado usa “Daesh” – em sintonia com o presidente da França, que usa exclusivamente “Daech”. Afinal, por que tantos nomes e siglas para um mesmo grupo terrorista?
O grupo radical foi fundado com o longo nome (em árabe) “O Estado Islâmico no Iraque e na Síria”.
Assim, num primeiro momento, a maioria dos meios de comunicação usaram a tradução “Estado Islâmico no Iraque e na Síria” – em inglês, Islamic State in Iraq and Syria, abreviada como ISIS (pronunciada aproximadamente, em inglês, “Áices”). A tradução letra a letra ao português (assim como ao francês ou ao espanhol) resultaria na sigla EIIS, que, por não ter a mesma sonoridade que ISIS, acabou não ganhando popularidade. No Brasil, consagrou-se mesmo a pronúncia “Ísis” (idêntica à do nome feminino).
Logo houve, porém, vozes a apontar que a tradução que vinha sendo usada em inglês podia não ser a mais apropriada, uma vez que a última palavra do nome do grupo, “Síria” (Xam, em árabe) podia não significar aquilo que a maioria da população ocidental supunha.
A rigor, Xam de fato significa literalmente “Síria”. A questão é que “Síria” pode significar (não apenas em árabe, mas mesmo em português) tanto o país atual, cuja capital é Damasco, quanto toda a chamada região da “Síria histórica” ou da “Grande Síria” – região que abrange não apenas a atual Síria, mas países ao redor, como Jordânia, Líbano, Israel e Palestina.
Como logo ficou claro que o grupo terrorista não planejava se limitar aos territórios do Iraque e da Síria moderna – e com vistas a tentar “facilitar as coisas” para seus espectadores e evitar possíveis ambiguidades -, alguns jornalistas e analistas tomaram a liberdade de começar a traduzir o Xam do nome do grupo não mais como “Síria” (ou “Grande Síria”), mas como “Levante” – termo que, embora não seja tradução correta de Xam, tem significado próximo o suficiente para “quebrar o galho”, com a vantagem de ser mais conhecido do público ocidental.
Ganhou, assim, popularidade a tradução “Estado Islâmico no Iraque e no Levante” – em inglês, Islamic State in Iraq and the Levant (abreviado como ISIL – ou, em português, espanhol e francês, EIIL).
No início de 2015, o próprio grupo terrorista mudou oficialmente de nome: segundo anunciado pelos próprios criminosos, o grupo passava a chamar-se apenas “Estado Islâmico”, sem qualquer complemento – numa clara evidência das aspirações universalistas do grupo.
Desde logo, muitas vozes em todo o mundo árabe (e em todo o mundo) se opuseram ao uso do nome “Estado Islâmico” – adotá-lo, diziam, seria atender a um pedido dos próprios terroristas; e, ademais, seria legitimá-los, ao tratá-los como um “Estado” de fato (algo que nenhum país do mundo reconhece). Ademais, estar-se-ia corroborando uma associação incorreta entre os terroristas e a religião islâmica (ou muçulmana), ao chamar “islâmico” ao grupo terrorista, rejeitado pela grande maioria dos muçulmanos do mundo.
No lugar de “Estado Islâmico”, vem ganhando então popularidade a alternativa “Daesh” – transliteração inglesa da sigla pela qual o grupo terrorista é chamado em árabe. O presidente da França, François Hollande, e o equivalente a ministro das Relações Exteriores dos EUA, o Secretário de Estado John Kerry, passaram a referir-se oficialmente aos terroristas como “Daesh” ou “Daech”.
“Daesh” nada mais é, porém, que “ISIS” em árabe – ou seja, a sigla formada pelas quatro iniciais das quatro palavras principais do nome “Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ou no Levante)”.
A sigla, na verdade, é “D.A.E.Sh“: “Estado” em árabe é “Dawla” (de onde vem o “D”); o adjetivo “islâmico” no nome é escrito “al-islāmiya” (do qual vem o “A”); em árabe, “Iraque” pode ser pronunciado com “I” ou com “E” inicial – donde vem a letra “E” da sigla; e do nosso já mencionado Xam, que significa Síria (seja a Síria moderna, seja a Grande Síria histórica) em árabe, vem a última letra – em inglês representada por duas letras (sh), razão pela qual a sigla, que, só tem quatro letras em árabe, acaba transliterada em inglês com cinco: DAESH. Em francês, da mesma forma, o som representado em inglês por “sh” é escrito com um dígrafo: “ch” – razão pela qual os franceses escrevem Daech, com ch em vez de sh.
Por não existir um método oficial ou único de escrever, com o alfabeto latino, palavras árabes, é comum encontrar várias outras grafias tanto em francês quanto em inglês – Daish, Daich, Da’ich, Da’ish, Da’es, etc.
Da mesma forma, não faria sentido adotar em português a transliteração da língua inglesa (Daesh), ou a francesa (Daech), ou a alemã (Daesch), etc. Em português, a letra que inicia a palavra Xam sempre foi grafada com o nosso “x”. Pela mesma razão que em inglês se escreve sheikh e em francês, cheikh, o título árabe chamado xeique ou xeque em português – ou pela qual escrevemos xiitas, enquanto franceses escrevem chiites e os ingleses, Shias – é que a adaptação, ao português, do nome árabe do grupo Estado Islâmico (Daesh em inglês, Daech em francês) é, em português, Daexe.
É essa, aliás, a forma corretamente usada pela União Europeia, que, ao traduzir para cada uma de suas suas 23 línguas oficiais uma “Proposta de resolução do Parlamento Europeu sobre o perigo do Daexe na Turquia” usou, corretamente, o aportuguesmento Daexe.
A questão, porém, é: por que é melhor (ou mais “politicamente correto”) chamar os terroristas pelo nome de Daexe ou Daesh, e não de “Estado Islâmico”?
Não há diferença entre “Daexe” e a já popular “ISIS” em termos de significado: ambas significam exatamente o mesmo, sendo ambas siglas que usam o nome original do autointitulado “Estado Islâmico” – com a diferença de que esta é o aportuguesamento, já popularizado, da sigla inglesa, enquanto aquela seria um aportuguesamento, ainda a ser divulgado, da forma árabe.
Nos EUA e na Europa vem ganhando, porém, força o argumento de que convém usar as formas Daesh/Daech/etc. porque os próprios terroristas supostamente detestariam o nome – e porque a palavra, em árabe, seria um trocadilho, uma vez que “Daexe” soaria similar à palavra árabe Daes, com sentido pejorativo.
De fato, a palavra árabe Daes significa “pisotear”, “esmagar ou triturar pisando em cima”. “Daesh“, assim, soaria parecido com “pisoteador(es)”, “esmagador(es)”. Ainda assim, diz a imprensa internacional, o próprio grupo terrorista “detestaria” a sigla, e teria ameaçado “cortar a língua” de quem o utilizasse.
A verdade, porém, é que todos os artigos e notícias que defendem o uso de “Daesh” com base na teoria de que os terroristas “detestaria” esse nome remetem a uma mesma fonte com a história da suposta ameaça dos terroristas de cortar línguas de quem o usasse – sem que exista, porém, qualquer comprovação ou sequer evidência de que a história seja real (até porque, sejamos honestos: ser conhecidos como “esmagadores” não parece ser algo realmente pejorativo para um grupo famoso por decapitar, queimar ou jogar do alto de edifícios suas vítimas).
O que sim é provável é que os terroristas não gostem de ser chamados de Daesh/Daech/Daexe – tanto quanto não devem gostar de ser chamados de ISIL, EIIL, etc. -, por duas razões muito mais simples.
Em primeiro lugar, porque qualquer uma dessas siglas – Daexe ou Daech, ISIS ou ISIL – se referem ao nome antigo, que ainda fazia referência à limitação gegráfica do grupo ao Iraque e à Síria, e seu uso mesmo após o grupo ter dito que seu nome atual é apenas “Estado Islâmico” pode ser interpretado como um rechaço ao novo nome pelo qual querem ser chamados e um desafio a sua autoridade.
E em segundo lugar porque – esse é um fato que a maioria dos jornalistas e articulistas ocidentais têm falhado em explicar – o fato é que a língua árabe, diferentemente das línguas ocidentail, normalmente não usa siglas – em inglês, português, francês, etc., é normal chamar os EUA de “os EUA”, e a ONU de “a ONU”; em árabe, não há essa tradição – não há, na língua, a tradição de se criar palavras novas (como “ONU”), com sons próprios, de modo que toda e qualquer sigla usada como uma palavra simplesmente “soa” mal aos ouvidos tradicionalistas árabes. Ser chamado por uma “palavra inventada”, que não significa nada, é o que mais provavelmente desagrada aos terroristas.
É importante notar, porém, que, por essa lógica, absolutamente nenhuma diferença faz que o termo usado seja Daesh/Daexe ou ISIL/EIIL.
De fato, não há qualquer razão para que Barack Obama pare de usar ISIL ou ISIS e passe a usar Daesh, para que François Hollande pare de usar as siglas em favor de Daech, nem para que qualquer falante de português passe a falar e escrever Daexe apenas por achar que essa é uma forma que desagrada aos próprios terroristas. O que os terroristas querem é ser chamados de “Estado Islâmico” – qualquer sigla que se use é considerada desrespeitosa por eles, inclusive pela falta de tradição de uso de siglas na cultura árabe. Se a sigla Daexe ou Daesh significa, porém, exatamente o mesmo que ISIS, não há por que deixar de usar, no Brasil e em Portugal, a forma com a qual já nos habituamos: “o ISIS” (pronunciado “Ísis”) – além de já ser a forma popularizada, ISIS tem ainda um “extra” – afinal, não há como negar que “pisoteadores” deve desagradar menos a um grupo de terroristas que subjugam mulheres e odeiam todas as outras religiões do que serem chamados pelo nome de uma antiga deusa egípcia.
Assim que, ao menos por aqui, continuaremos a usar ISIS.
Ísis, deusa dos antigos egípcios