“Siderólito”: comparando dicionários

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Um siderólito é um meteorito feito (aproximadamente) metade de pedra, metade de metal. É a composição que  o diferencia da maioria dos meteoritos, que são ou apenas de pedra, ou apenas de metal.

Quem tentasse aprender o que é um siderólito com os grandes dicionários brasileiros e portugueses, porém, teria grande chances de ser levado a erro – quase todos os dicionários trazem explicações equivocadas ou incompletas. Comparem-se os grandes dicionários portugueses e brasileiros quanto ao verbete “siderólito”:

Dicionário Houaiss descreve um siderólito como um “meteorito relativamente raro, que contém grandes proporções, e aprox. iguais, de ferro, níquel e silicatos“. A definição está, portanto, errada. Da maneira como está escrita, a única compreensão possível seria a de que um siderólito é composto por aproximadamente 33,3% de ferro, 33,3% de níquel e 33,3 % de silicatos (minerais). Errado.

O Dicionário Aurélio diz que siderólito é um “Aerólito com grande proporção de minérios de ferro e de níquel, afora outros corpos não metálicos“. Não está errado, mas é impreciso. Um meteorito quase inteiramente composto por minérios, com apenas uma pequena proporção de corpos não metálicos, não pode ser chamado siderólito, mas se encaixaria na definição do Aurélio.

A nova versão na Internet do Dicionário Michaelis é, basicamente, uma grande paráfrase gratuita do Houaiss, que fez questão de copiar todos os erros do Houaiss. No caso em apreço, não fez por menos: simplesmente repetiu a definição errada do Houaiss: “Tipo de meteorito que contém proporções praticamente iguais de ferro, níquel e silicato“.

As cópias pura e simples do Houaiss feitas pelo novo Michaelis ficam sempre mais evidentes quando se compara uma palavra no novo Michaelis com a mesma palavra no antigo Dicionário Michaelis em papel. Na versão em papel, que tanto sucesso fez no Brasil na década de 1990, o Michaelis definia siderólito como um “Aerólito rico em minérios de ferro” – não era uma definição perfeita, mas pelo menos não estava errada. Em outras palavras, a editora do dicionário simplesmente jogou fora (nesse caso e em muitos outros) uma definição correta para substituí-la por uma cópia de um erro do Houaiss.

O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (a homóloga portuguesa da nossa Academia Brasileira de Letras) desconhece a palavra. O Dicionário Priberam também nunca ouviu falar.

O Dicionário Aulete diz que um siderólito é o mesmo que “minério de ferro“. Errado.

Finalmente, a portuguesa Porto Editora diz que um siderólito é um “tipo de meteorito em que os elementos metálicos (ferro) e os líticos (silicatos) entram em proporções quase iguais“. Bingo! Temos um vencedor!

Dicionrio-Ilustrado-da-Academia-Bras-de-Letras-Edio-20150127164911O Dicionário Estraviz, da Galiza, traz quase a mesma definição.

É especialmente notável que no grande dicionário da Academia Brasileira de Letras (foto da versão ilustrada aqui ao lado), de autoria do genial Antenor Nascentes, já vinha, corretamente, na edição de 1977: “meteorito com 50% de metal em sua composição”. É impressionante que uma obra já com quase meio século de idade e que nunca se popularizou seja até hoje mais completa e precisa do que quase todos os dicionários modernos. Infelizmente, o grande dicionário da ABL não é reeditado desde 1988.

Entubar ou intubar: a diferença entre entubado e intubado

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Sou médica, e minha vida toda aprendi que os termos corretos eram intubação intubar. Surpreendi-me ao ver que o dicionário Houaiss traz “entubação” e “entubar” como formas preferíveis. Algo mudou na língua, ou o Houaiss errou?

Resposta: Nada mudou, e o Houaiss está errado. Etimologicamenteintubar significa colocar um tubo dentro de algo ou alguém; e entubar significa colocar algo ou alguém dentro de um tubo.

É esse o entendimento do Dicionário Aurélio, dos dicionários de  Portugal (ver aqui) e dos dicionários especializados em terminologia médica brasileiros e portugueses, que apenas registram as formas com “in”, intubação e intubar, para os termos médicos.

Etimologicamenteintubar significa colocar um tubo dentro de algo ou alguém; e entubar significa colocar algo ou alguém dentro de um tubo.

Por essa razão, o termo técnico formal para “inserir um tubo em alguém“, como em um procedimento médico, é intubar ou fazer uma intubação. O prefixo “in” indica a inserção de algo.

O procedimento oposto – a retirada do tubo – é uma extubação, com o prefixo “ex“, que é sempre o oposto do prefixo “in” (por exemplo: inspirar/expirarincluir/excluirimplodir/explodir, etc.).

É essa, aliás, a mesma forma que se usa em todas as línguas: em inglês, intubation; em francês,  intubation; em espanhol, intubación; em italiano, intubazione; em alemão, Intubation; em holandês, intubatie; em húngaro, intubálás; em ucraniano, Інтубація, etc.

entubar e entubação significam, etimologicamente, inserir em um tubo, ou entrar em um tubo (como a manobra no surfe que consiste em entubar ondas) ou dar feição de tubo a algo.

Modernamente, e como o uso é o senhor da língua, a maioria dos dicionários passou a aceitar também “entubação” e “entubar” como formas não técnicas sinônimas de “intubação” e “intubar”.

O que é absurdo – e um desserviço à língua, pela confusão causada – é o Dicionário Houaiss (2001) decretar, sozinho e sem explicação, que as formas com “e” são mais corretas ou preferíveis, para todos os casos. É o mesmo tipo de desserviço que faz o Houaiss, por exemplo, ao, em desrespeito a séculos de tradição lexicográfica portuguesa e brasileira, decretar (equivocadamente) que broxar e brochar são sinônimos perfeitos, ou ainda quando  traz tríplex, mas não a muito mais usada e inclusive recomendada pelas Academias Brasileira e portuguesa triplex, ou ao registrar apenas oximoro, mas não a correta oxímoro; ou ainda quando o Houaiss traz pachto, mas não a correta em português pastó; ou Malaui sem acento, mas não as corretas Malawi ou Maláui, para citar apenas alguns poucos dos muitos erros que, como todo grande dicionário, o Houaiss comete.

“Parricídio” e “patricídio”

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Na publicação anterior sobre deicidas, fordicidas, gaticidas e afins, um leitor comentou ter sentido falta, na lista, de “parricida” – aquele que comete um parricídio: o ato de matar o próprio pai, ou a própria mãe, ou um avô ou avó, ou bisavô ou bisavó, ou qualquer outro ascendente.

Parricídio não é, assim, o mesmo que patricídio – ao contrário, portanto, do que afirma, erradamente, o Dicionário Houaiss. Patricida é aquele que mata o próprio pai, e ponto final – é, portanto, forma análoga de “matricida” (aquele que mata a própria mãe).

Dar um significado errado, como faz o Houaiss, é pior do que o que fazem o Dicionário Aurélio, o Aulete, o Michaelis, o da Porto Editora e o da Texto Editores, que sequer trazem as palavras patricídio patricida.

Na “prova” de hoje, o dicionário que se sai melhor é, sem dúvida, o Priberam (que além de tudo é grátis), que define, muito bem, patricida como quem mata o próprio pai, matricida como quem mata a própria mãe, e parricida como “Pessoa que mata seu pai ou sua mãe ou outro qualquer dos seus ascendentes.” ou ainda, por extensão, “Pessoa que atenta contra o rei ou contra a pátria“.

 

‘Chikungunya’, em português: chicungunha – ou catolotolo

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O mosquito transmissor da dengue é um tríplice vetor de doenças ao homem: transmite, além da dengue e da já aqui tão discutida zica (e não Zika), também a chikungunya – cujo correto aportuguesamento é chicungunha.

Por vezes se ouve, em noticiários, a denominação “febre chicungunha” – puro decalque do inglês, onde também a dengue é chamada “Dengue fever“, sem que, só por isso, a tenhamos traduzido como “febre dengue”.

O nome Chikungunya vem da língua maconde, língua bantu da África oriental. O prefixo “chi“, pronunciado “tchi”, indica, em maconde e em outras línguas bantus, tratar-se de coisa (há outros prefixos, por exemplo, para verbos, pessoas, etc.); já a raiz da palavra vem do verbo “kungunyala” (pronunciado “cungunhala”), que significa “ficar contorcido / retorcido” – é o verbo que se usa, por exemplo, para se referir ao estado dos troncos e galhos de árvores que, no período da seca africana, ficam retorcidos. O nome de chikungunya para a doença deve-se à sensação de intensa dor nas juntas por ela causada, com a consequente prostração do doente.

O aportuguesamento chicungunha, que já vem sendo usado pela imprensa brasileira e portuguesa, obedece rigorosamente às regras ortográficas do português, com a substituição do “k” pelo “c” e a manutenção do “ch” com base na etimologia, segundo critérios já abordados (aqui e aqui).

Para os puristas da língua, que podem preferir um termo mais tradicional em português, existe a opção catolotolo – como a doença já era chamada, há anos, no português de Angola. O nome angolano vem do quimbundo: deriva do verbo para “ficar alquebrado” – isto é, fraco, curvado, contorcido. Interessantemente, o nome angolano catolotolo tem, portanto, etimologia análoga à da sua contraparte usada na outra costa da África, chicungunha – embora tenha sido esta, e não aquela, a popularizar-se mundialmente, pela adoção pela língua inglesa.

Também interessante, porém, é o fato de que, embora seja o único dicionário que já registre catolotolo, a Porto Editora não parece, pela definição apresentada, ter ciência de que catolotolo é a mesma doença hoje mais conhecida em Portugal (e no Brasil) como chicungunha.

[Atualização: dias após esta publicação, a Infopédia da Porto Editora incluiu o verbete chicungunha e atualizou o verbete catolotolo com a informação de que pode significar o mesmo que chicungunha.]