Qual o símbolo do litro: L ou l? Pode ser em itálico ou em letra cursiva?

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Qual o símbolo do litro: l ou L? Dois litros são 2 L ou 2 l ? Dez mililitros são 10 ml ou 10 mL?

Resposta: Os dois. Pelo sistema internacional de pesos e medidas, que regulamenta a escrita dos símbolos de unidades de pesos e medidas em todo o mundo, o litro é a única das principais unidades de pesos e medidas que tem dois símbolos aceitos: l ou L (isto é, uma letra ele minúscula ou maiúscula).

O sistema internacional de pesos e medidas é regulamentado pelas Conferências Gerais de Pesos e Medidas, que ocorrem periodicamente (uma ou duas a cada década) em Paris (onde o sistema métrico foi criado), com representantes de todo o mundo.

Em geral, cada unidade recebeu um único símbolo; normalmente, as unidades básicas têm como símbolo uma letra minúscula – o símbolo do metro, por exemplo, é um m minúsculo, e o do grama é um g minúsculo. Quando, no entanto, o nome da unidade vem do nome de uma pessoa, o símbolo escolhido para representá-los costuma ser uma letra maiúscula (ou começar por maiúscula): é por isso que o símbolo do joule, por exemplo, é um J (maiúsculo), e o do pascal é Pa.

Seguindo essa lógica, o símbolo do litro deveria ser simplesmente l. O problema é que, em muitas fontes e grafias, uma letra ele minúscula pode ser facilmente confundida com um i maiúsculo (I), ou mesmo com o número 1. Por essa razão, na Conferência Internacional de Pesos e Medidas de 1979 decidiu-se que o litro poderia ser representado das duas formas – isto é, que o litro tem dois símbolos aceitos, L ou l: é tão correto representar um litro por 1 l quanto por 1 L; dois litros por 2 L ou por 2 l, etc.

Isso também se aplica aos seus derivados: um mililitro, por exemplo, pode ser tanto representado por ml quanto por mL (o m, porém, deve ser sempre minúsculo).

Antes de a Conferência se pronunciar no sentido de autorizar o uso do L maiúsculo, chegou a ter certa popularidade a prática de representar o l do litro com uma representação de uma letra l cursiva – isto é, ℓ -, para evitar a confusão. Havia, assim, quem representasse dois litros por 2 ℓ, dez mililitros por 10 mℓ, etc. É importante frisar que esse uso foi vedado pela Conferência Geral, pois tornou-se desnecessário uma vez que a Conferência autorizou o uso do L maiúsculo com o mesmo fim.

Tanto faz, portanto, representar 10 litros por 10 L ou 10 l, vinte mililitros por 20 ml ou 20 mL – as duas formas são corretas, em todo o mundo.


Findo o texto, vale a pena usar o tema da publicação para analisar e comparar os dicionários de português existentes. O exemplo de hoje, aliás, reforçar o que sempre vemos aqui: que mesmo os melhores dicionários têm muitos e muitos erros, de modo que nenhum deles deve ser tomado como autoridade inconteste.

Dicionário Houaiss, embora seja o melhor dicionário de português hoje existente, traz dois erros importantes no caso em apreço: no verbete “litro”, diz que o seu símbolo é apenas l minúsculo; está, portanto, quase 40 anos atrasado, já que desde 1979 os símbolos aceitos são os dois, maiúsculo e minúsculo. Num erro ainda mais grave, o Houaiss apresenta o símbolo do litro como um l em itálico. Está errado – o símbolo do litro é l (ou L), mas não l. É uma regra do sistema internacional de pesos e medidas que os símbolos de unidades de pesos e medidas não se escrevem em itálico.

Por conta desse erro, aliás, nota-se que o Houaiss traz erros nos verbetes de todas as unidades de pesos e medidas, pois traz todos os símbolos em itálico (diz que o símbolo do metro é m, que o símbolo do grama é g, etc.). Todos errados; os símbolos não se escrevem em itálico. Fica aí o trabalho para a equipe do Houaiss, que terá de corrigir, um por um, todos os verbetes referentes a pesos e medidas.

O Dicionário Michaelis e o Dicionário Aulete já foram, cada qual em seu tempo, o mais completo dicionário da língua, quando eram publicados em papel. Muito tristemente, ambos foram já neste século XXI refeitos quase do zero em versão integralmente digital, em ambos os casos por equipes que não fizeram mais que copiar o exitoso Houaiss – repetindo, de forma resumida e às vezes parafreseada (outras vezes nem isso) quase tudo que vinha no Houaiss – inclusive todos os muitos erros do Houaiss. Como foi o caso também no verbete “litro”: tanto o Michaelis quanto o Aulete repetem os dois erros do Houaiss no caso, afirmando que o litro só teria um símbolo, o (exclusivamente minúsculo e em itálico). Afirmação duplamente errada.

O sempre respeitável Dicionário Aurélio se sai um pouquinho melhor: ensina que o símbolo do litro pode ser a letra ele maiúscula ou minúscula, o que está certo, mas erra ao dar ambos os exemplos em itálico. É uma regra internacional: os símbolos das unidades não se escrevem em itálico. Erro do Aurélio também, portanto.

Em Portugal, o Dicionário Priberam não chega a errar, porque se esqueceu de indicar, no verbete “litro”, qual o símbolo da unidade. Na Galiza, o Dicionário Estraviz incorre no mesmo lapso.

Ainda em Portugal, o Dicionário da Porto Editora é, assim, o único dos dicionários de português disponíveis na Internet que traz a informação correta: litro é “unidade de medida de volume ou capacidade, de símbolo l ou L”. Mais um ponto para a Porto Editora.

Anões ou anãos? Qual o plural correto de anão?

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O plural de “anão” em português pode ser “anãos” ou “anões”; as duas formas estão corretas.

Anunciou-se hoje que as novas traduções brasileiras dos livros de J. R. R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis, usarão o plural “anãos”, em vez de “anões”. Invencionice dos tradutores? Não: segundo todos os dicionários e gramáticas de Portugal e do Brasil, a palavra “anão” tem dois plurais corretos: anãos e anões.

Nem sempre foi assim; embora hoje a forma mais usada seja “anões“, originalmente “anão” fazia parte do grupo de palavras como “mão”, “irmão” e “cristão”, que só admitem plural em “-ão”: mãos, irmãos, cristãos… e anãos.

No entanto, esses casos são minoria: a maioria dos substantivos portugueses terminados em “ão” tem plural em “ões”: ação/ações, produção/produções, coração/corações, etc. Isso faz que as pessoas com frequência acabem errando o plural de algumas exceções menos usadas, como “refrão” e “anão”, e acabem, por erro, empregando um plural em “ões” etimologicamente incorreto. Mas algo que o português e todas as línguas vivas têm em comum é que – para o desespero dos puristas -, quando a maioria dos falantes cultos acaba cometendo um mesmo erro, esse erro acaba deixando de ser percebido como erro, e passa a ser aceito como forma correta.

É o que aconteceu com o plural de anão: o plural que era errado, “anões”, ficou tão popular que passou a ser considerado a forma correta, e a forma que era originalmente a única correta, “anãos”, ficou tão rara que muitos falantes hoje chegam a achar que está errada, por desconhecerem a história da palavra.

No texto “Plural das palavras terminadas em -ão” é apresentada a explicação histórica de por que existem esses plurais diferentes para a terminação “ão” em português – e apresenta-se até uma regra que permite “intuir” qual a forma correta (“O plural de guardião é guardiãos ou guardiães?“, por exemplo). Clique aqui para ler a explicação.

O patinete ou a patinete? Um patinete ou uma patinete? Patinete é feminino ou masculino?

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O certo é dizer “um patinete” ou “uma patinete”?

Quem abrir o dicionário Houaiss, entre outros, poderá surpreender-se, ao ver que, lá, patinete é considerado um substantivo feminino – embora no Brasil praticamente só se use no masculino: “um patinete”, “o patinete”. O dicionário Michaelis contraria o Houaiss e traz patinete como substantivo masculino, como é usado no Brasil:

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O que explica a divergência? A evolução da língua – nisso, o Michaelis está à frente do Houaiss.

Ao longo de toda a história do português, sempre houve grande oscilação no gênero de palavras terminadas em “e”. “Ponte” e “árvore”, por exemplo, eram palavras masculinas em português (dizia-se “o ponte” e “o árvore”), como ainda são em espanhol, italiano e francês. No uso, os falantes de português acabaram usando essas palavras no feminino – e com tanta frequência, que o que no começo era um erro acabou virando a norma.

Esse tipo de mudança, que já ocorria séculos atrás, continua até hoje: tempos atrás, por exemplo, ocorreu com “omelete” e “quiche” – dois substantivos que vieram do francês, língua em que são femininos, entraram em Portugal, onde continuam a ser femininos, mas no Brasil viraram, pouco a pouco, masculinos – hoje, todos os dicionários brasileiros admitem que se diga “o omelete” e “o quiche”, ao lado das formas “originais” “a omelete” e “a quiche”, que, de tão raras, já começam a causar estranheza a quem as ouve.

É o mesmíssimo o caso de patinete. Como “omelete”, veio diretamente do francês, língua na qual é feminino; em Portugal, entrou como feminino, e como feminino entrou no Brasil, mas no Brasil virou masculino.

Prova dessa mudança é que há hoje 52 900 resultados para “o patinete“, entre aspas, no Google – mais de dez vezes mais do que para “a patinete“.

Entre os bons autores brasileiros contemporâneos, só encontramos patinete no masculino: é assim que usam, entre outros, Lygia Fagundes Telles, o “imortal” (membro da Academia Brasileira de Letras) Alberto da Costa e Silva e, já em 1968, Luis Fernando Verissimo.

“Patinete” parece estar, assim, no mesmo caminho de “omelete”: já foi feminino, hoje pode ser usado nos dois gêneros, mas, no Brasil, o gênero mais ouvido é o masculino, sendo que o feminino causa mesmo estranheza. Haverá, é claro, os puristas que se revoltarão com essa “mudança”, por desconheceram a regra mais básica dos estudos das línguas: que toda língua com falantes vivos está sempre em constante processo de mudança, e que tudo que hoje é regra já foi erro.

Querer lutar contra “o patinete” ou “o omelete” acaba sendo como ter tentado lutar, séculos atrás, contra “a árvore” e “a ponte”, sob o argumento purista de que essas duas palavras eram masculinas em latim, tinham entrado como masculinas em português e não podiam mudar de gênero “de repente” só porque cada vez mais pessoas aderiam a esse “erro”.

Ao fim, como sempre ocorre nas línguas vivas, o erro da maioria acabou virando a norma – e do mesmo modo que “ponte” e “árvore” mudaram de gênero, “omelete” e “patinete” seguem hoje o mesmo caminho.

Festa julina, julhina ou junina? Existe a palavra “julina”?

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Uma festa do tipo junina que ocorra no mês de julho pode, corretamente, ser chamada julina. “Julina” é o feminino de “julino“, que por sua vez significa “relativo ao mês de julho“.

A grafia “julhina” é errada, pois o radical erudito (usado na formação de palavras) de “julho” é “jul-“, e não “julh-“; do mesmo modo que o adjetivo referente a junho é “junino”, e não “junhino.

Há quem afirme, porém, que a palavra “julina” não pode ser usada, não existe ou é incorreta, por supostamente não vir em dicionários ou no VOLP (o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) da Academia Brasileira de Letras. Quem diz isso revela não entender como a língua, os dicionários e o VOLP funcionam.

Nenhum dicionário ou vocabulário contém nem pretende conter todas as palavras de uma língua; pelo contrário, a maioria das palavras corretas de uma língua não vem no dicionário.

O dicionário em papel à venda hoje que traz o maior número de palavras é o “Aurelião”, a versão completa do dicionário Aurélio; na introdução, porém, assinada pelo próprio autor em vida, Aurélio Buarque de Hollanda deixa claro que, em relação ao tamanho total da língua, seu dicionário é “inframédio” – isto é, contém menos da metade das palavras corretas existentes.

Por limitações de espaço, há centenas de milhares de palavras corretas que não entram no dicionário. Mesmo não pretendendo recolher todas as palavras de uma língua, as equipes que trabalham em dicionários recolhem semanalmente palavras novas, tiradas da imprensa, de textos (mesmo de redes sociais) ou ouvidas dos falantes.

As palavras mais usadas acabam sendo recolhidas pelos dicionários, e apenas depois de entrar no dicionário, uma palavra segue para vocabulários. Na elaboração da última edição do VOLP, por exemplo, anos atrás, a Academia Brasileira de Letras pediu ao Aurélio e ao Houaiss listas com as milhares de palavras que vinham nos dicionários mas faltavam no VOLP.

Dizer que uma palavra não é correta ou não deva ser usada por não estar nos dicionários ou no VOLP é, portanto, completamente errado, pois há um número imensurável de palavras portuguesas corretas não recolhidas em dicionários, e é justamente apenas após ser usada em contextos reais, sobretudo em meios escritos, que uma palavra poderá  vir a ser recolhida pelos dicionários, e eventualmente, depois dos dicionários, pelo VOLP.

Pode até ser que a palavra, com uma frequência relativamente baixa, nunca chegue a entrar nos dicionários, mas não por isso ela será incorreta ou deverá ser evitada: se a palavra foi formada corretamente, de acordo com os processos de formação de palavras da gramática portuguesa – e é esse o caso de “julina” -, a palavra é correta e pode ser usada.

É perfeitamente correto, frise-se, usar palavras que não estão nos dicionários.

Ainda assim, para provar de vez que estava errado quem defendia que a palavra “julina” estava errada, convém notar que o dicionário Houaiss acaba de incluir a palavra julino na sua versão na Internet:

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E existirá adjetivo referente a “agosto”? A “setembro”, “outubro”? Sim. Como se acaba de explicar, por terem uma frequência de uso muito menor que “junino” e “julino”, estas palavras não devem entrar nos dicionários – mas é perfeitamente correto usar termos como “agostino”, “setembrino”, “outubrino”, “novembrino” e “dezembrino”, que têm relativo uso e que seguem o mesmo processo correto de formação vocabular que nos deu “junino” e “julhino”.

“No Laos”, e não “em Laos” – países, em geral, levam artigo definido

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O jornal O Globo acaba de publicar notícia sobre bebê resgatado “em” Laos. Erraram. Em bom português, o bebê foi resgatado no Laos. O Laos é um país da Ásia e, como ocorre com a maioria dos países na língua portuguesa, leva o artigo definido: diz-se, assim, “no Laos”, “do Laos”, e não “em Laos” ou “de Laos”.

O uso do artigo definido com os nomes próprios de lugares (topônimos) é questão complexa da gramática portuguesa, pois não há uma regra única: a maioria das cidades, por exemplo, não leva artigo (“em São Paulo”, “em Lisboa”, “em Porto Alegre”), mas há exceções (“no Rio de Janeiro”). Já a maioria dos países leva artigo (“o Brasil”, “a Alemanha”, “o Laos”), mas também há várias exceções, como é o caso de Portugal.

Para não errar, assim, é necessário memorizar cada caso – ou recorrer à lista completa de países com os quais se usa (e com os quais não se usa) o artigo definido, elaborada conforme as informações do dicionário Houaiss, que segue, nesse tema, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro.

Como se pode ver na lista, dispensam o artigo os seguintes países membros da ONU: Andorra, Angola, Antígua e Barbuda, Barbados, Belize, Cabo Verde, Chipre, Cuba, El Salvador,  Fiji, Gana, Granada, Honduras, Israel, Liechtenstein, Luxemburgo, Madagascar, Malta, Maurício, Moçambique, Mônaco, Montenegro, Myanmar, Nauru, Omã, Palau, Ruanda, Santa Lúcia, San Marino, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas, São Tomé e Príncipe, Singapura, Timor-Leste, Tonga, Trinidad e Tobago, Tuvalu, Uganda e Vanuatu.

Com todos os demais países – como por exemplo o Laos -, o artigo definido deve ser usado.

Por fim: quem nasce no Laos é laosiano. Alguns dicionários trazem como sinônimas as formas laocianolaotiano, que nada mais são que barbarismos copiados de outras línguas; os gramáticos recomendam apenas a forma laosiano.

Uma pastora-alemã ou uma pastor-alemão? Raças de cães têm feminino?

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Devemos dizer “uma pastor-alemão” ou “uma pastora-alemã”? Em outras palavras, as raças de cães têm feminino?

Ao ouvirmos pela primeira vez o correto feminino de certos substantivos que só estamos acostumados a ouvir no masculino, a tendência é o estranhamento. Assim, há quem hesite, por exemplo, quanto a como chamar uma mulher que trabalha entregando cartas – a que chegam a chamar de “uma carteiro”, por acharem que o feminino “carteira” estaria incorreto. Não está; poderá soar estranho nas primeiras vezes em que se ouve, mas uma mulher que entrega cartas é, naturalmente, uma carteira.

Do mesmo modo, não existe em gramática alguma previsão de que as raças de cães ou  de outros animais sejam exceções em português, não tendo flexão no feminino. Sendo substantivos comuns, raças de animais têm femininos regulares: uma fêmea de gato siamês é uma gata siamesa, do mesmo modo que é correto referir-se a uma cadela maltesa ou a uma cachorra pequinesa (e não a uma “cadela maltês” nem a uma “cachorra pequinês“).

[Vale recordar, já que há quem tenha dúvida: “cadela” é o feminino de cão, e “cachorra” é o feminino de cachorro; as duas palavras, cadela e cachorra, existem e são corretas.]

Uma fêmea de buldogue francês será, naturalmente, uma buldogue francesa. A fêmea de um dogue alemão é uma dogue alemã.

Do mesmo modo, em português se dirá “uma labradora“(e não “uma labrador“) e “uma pastora-alemã” (e não “uma pastor-alemão“).

Uma exceção: como outros substantivos femininos derivados de nomes próprios masculinos (como “a são-bento”, “a são-pedro”), o nome “são-bernardo” fica invariável: uma fêmea de são-bernardo é “uma são-bernardo“, do mesmo modo que se fala de “uma são-pedro” e “uma são-bento” – duas variedades de peras portuguesas.

A flexão dos nomes de raças de animais é comum às demais línguas neolatinas: a fêmea do pastor-alemão é, em espanhol, uma “pastora alemana“; em italiano, uma “pastora tedesca“; e em francês, uma bergère allemande (literalmente “pastora alemã”, bergère sendo o feminino de berger, pastor, e allemande o feminino de allemand, alemão).

Há um único vendedor de livros de “dicas de português” que defende, com base apenas na “opinião” dele próprio, que as raças de cães não tenham feminino – mas porque esse autor defende que as raças seriam invariáveis, não tendo sequer plural: na opinião dele, deveria dizer-se “duas buldogue“, “duas dálmata“, “duas pastor-alemão” – o que obviamente não é correto em português padrão.

Os grandes dicionários e gramáticas portugueses e brasileiros concordam que raças de cães são substantivos variáveis; deve dizer-se, portanto, “dois dálmatas” (e não “dois dálmata“) e “duas dálmatas”, “dois buldogues”, “duas buldogues”, “dois pastores-alemães”, “duas pastoras-alemãs”, etc.

Pastor alemão (ou pastor-alemão) tem hífen? E isso importa?

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O certo é pastor alemão ou pastor-alemão? O nome da raça de cães leva hífen ou não?

A quem aqui chegar preocupado em escrever da forma “oficial” e apenas interessado na resposta rápida: escreva o nome da raça com hífen. É assim que vem, por exemplo, no VOLP, o Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras – que, embora não tenha valor oficial, é usado como referência por dicionários brasileiros e mesmo pelo português Priberam.

Ainda assim, convém resistir à tentação de apontar o dedo a que escrever “pastor alemão” sem hífen como se se tratasse de erro: o Dicionário Michaelis, por exemplo, traz o nome da raça sem hífen, com abonação – a maioria dos bons autores, aliás, sempre escreveu o nome da raça sem hífen. O Houaiss em papel também traz apenas “pastor alemão” sem hífen, dentro do verbete “pastor”, mas na versão na Internet incluiu a forma hifenizada. E o Dicionário Aulete aceita as duas opções: traz tanto com hífen, “pastor-alemão”, quanto sem hífen, dentro do verbete “pastor”:

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E a verdade é que a solução salomônica do Aulete é a melhor: por que é que uma forma deve necessariamente estar errada?

Ouvir isso deve provocar arrepios no leitor que tenha chegado aqui após perder seu tempo consultando no Google qual a grafia “correta” para a raça, preocupado em não cometer um suposto “erro de grafia”; mas o que se quer aqui trazer à discussão é o fato de a língua portuguesa ser a única cujos falantes perdem tanto tempo, inutilmente, preocupados em descobrir se uma palavra ou expressão deve ser escrita com hífen ou não.

Deveríamos aprender a olhar a questão do hífen como o fazem os falantes das outras grandes línguas europeias – como o inglês, o francês, o espanhol, o italiano… todos eles há muito deixaram de se preocupar tanto com o hífen.

Em inglês e em francês, não existem regras rígidas para o uso dos hifens. Vários gramáticos ingleses repetem a máxima ensinada em manual da Universidade de Oxford, segundo a qual quem que se preocupar demais tentando seguir o uso “correto” dos hifens acabará por enlouquecer (“If you take hyphens seriously you will surely go mad“).

Assim, com a devida autorização das gramáticas e dos dicionários, cada falante de inglês tem o direito de corretamente, na escrita, escrever “air-crew“, “air crew” ou “aircrew“; “best seller“, “best-seller“, “bestseller” – todas as opções são corretas em inglês. Os dicionários limitam-se a registrar todas as opções conforme os autores as vão usando: várias expressões começam sendo escritas sem hifens, depois passam a levar o tracinho, e anos mais tarde passam a ser majoritariamente escritas numa só palavra: on lineon-lineonline.

Mas não é porque a maioria das pessoas hoje use online que quem escrever on-line estará cometendo um erro. As duas opções são corretas. Lá se entendeu, corretamente, que o hífen é uma questão de estilo, não de gramática.

A Academia francesa igualmente admite que, nos compostos, os falantes oscilam na grafia, recomendando aos dicionários o registro das variantes: é igualmente correto, assim, escrever haut-parleur ou hautparleur (alto-falante ou “altofalante”), porte-monnaie ou portemonnaie (porta-moedas ou “portamoedas”), sauf-conduit ou saufconduit (salvo-conduto ou “salvoconduto”), etc.

Em espanhol e em italiano foi-se ainda além, abolindo-se simplesmente o uso dos hifens. Em espanhol, por exemplo, em vez de ex-primeira-dama, escreve-se “ex primera dama“; em vez de porta-voz, escreve-se “portavoz“.

Se ainda não estamos no nível dos falantes do espanhol e do italiano, capazes de viverem sem hifens, brasileiros e portugueses deveriam ao menos aceitar – como já o fazem os falantes do inglês e do francês – que o uso do hífen é questão de estilo, e não de correção gramatical.

Haverá, porém, quem diga que a rigidez no uso do hífen – que só existe em português – é importante; há quem chegue a dizer que é preciso usá-lo para diferenciar um “pastor-alemão” (o cão) de um pastor que tenha de fato vindo da Alemanha. O argumento não se sustenta, já que, exceto em exemplos inventados propositadamente para ilustrar a suposta confusão, o contexto jamais permitiria uma dúvida do tipo – prova disso é que a maioria das pessoas já escreve “pastor alemão”, tanto na Internet quanto em bons livros, sem que jamais tenha havido confusão.

Para concluir definitivamente, por fim, a inutilidade do hífen em “pastor alemão”, basta ver o nome da raça nas outras línguas europeias antes citadas: em inglês, German shepherd; em espanhol, pastor alemán; em francês, berger allemand; em italiano, pastore tedesco. Em nenhuma dessas línguas se usa hífen no nome da raça.

Não é possível que os falantes de português sejam os únicos do mundo a precisar de um hífen para entender, em cada contexto, se se está falando de um cão ou de um ser humano de origem alemã.

Ter ou possuir? É errado usar o verbo “possuir”? Por quê?

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Muitos manuais ou páginas de dicas de redação recomendam evitar o verbo “possuir”. Isso quer dizer que o verbo “possuir” está sempre errado? Não. O problema está no seu uso indiscriminado.

O verbo “possuir” significa, literalmente, “tomar posse de” ou “ter posse de”. Um espírito maligno possui alguém; um fazendeiro pode possuir muitas terras; etc. Nesta última acepção, é, em geral, sinônimo de ter.

Ainda assim, a recomendação recente de evitar o verbo “possuir” surgiu para combater um modismo que se verificara: que muitas pessoas, querendo escrever mais “bonito” ou “difícil”, vinham simplesmente abandonando o tradicionalíssimo verbo “ter”, substituindo-o sempre por “possuir”.

Em vez de um natural “Não tenho filhos”, ouvia-se um pretensioso “Não possuo filhos”. Em vez da corretíssima frase “O planeta Marte tem dois satélites”, ouvia-se uma quase risível “O planeta Marte possui dois satélites”.

O problema todo do abuso do verbo “possuir” é que o seu uso repetido passou a ser visto como marca registrada de quem queria “falar difícil”, daqueles que evitam construções mais precisas e claras em favor de outras supostamente mais rebuscadas.

Esse uso de “possuir” em lugar de “ter” tornou-se um dos muitos que identificariam os seguidores da crença (equivocada) de que, para bem escrever (ou falar formalmente), é preciso expressar-se o mais diferentemente possível de como normalmente se fala. É essa crença equivocada que leva à maior parte dos erros que vemos em escritos de brasileiros cultos hoje – por exemplo, as abundantes ênclises erradas do tipo “que trata-se”, “não viu-me”, “também sentiu-se”…

A ideia de que seria “chique” substituir um verbo clássico português como “ter” por outro mais longo é o que se vê também entre os mesmos falantes inseguros que trocam sempre o verbo “pôr” por “colocar”, ou o verbo “estar” por “encontrar-se” (“Ele encontra-se ocupado”), etc.

É o mesmo tipo de insegurança, ainda, que levou à criação de modismos como “irá fazer”, “irá criar”; ou que tem levado pessoas a substituírem o tradicional “de férias” por um supostamente mais chique “em férias”, ou mesmo o tradicional fim de semana por final de semana; é a mesma pretensão de se “falar difícil” que leva brasileiros a acharem “feio” escrever as corretíssimas contrações “numa” e “num” e a crerem que é mais correto escrever “em uma” e “em um” (que os portugueses dizem que só se veem no Brasil) – ou que os faz acharem necessário substituir as mais tradicionais “tinha feito”, “tinha sido” por “havia feito”, “havia sido”

É, ainda, o mesmo tipo de insegurança que têm feito falantes cultos evitarem formas preferíveis, como “ter gasto”, “haver pago”, “tinha ganho”, para as substituir pelas até há pouco obsoletas “gastado“, “pagado” e “ganhado.

Em resumo, não é propriamente um erro de português dizer que alguém “possui” tantos filhos; é, na opinião de muitos, um problema de estilo, que chega inclusive a levar à perda de pontos em redações de concursos mais exigentes, por se empregar um verbo menos apropriado do que a solução mais óbvia, simples e precisa: o bom e velho verbo “ter”.

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Picado por uma cobra ou mordido? O certo é picada de cobra ou mordida de cobra?

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A Internet é mesmo terreno fértil para os falso “corretores” da língua portuguesa. Há quem tenha tentado, por exemplo, “corrigir” reportagem sobre uma “picada de cobra”, dizendo que cobra não pica, mas morde.

É errado falar em picada de cobra? Não, não é – basta abrir um dicionário (como o Aurélio, o Houaiss, etc.) para ver que, em português, a mordida de uma cobra é chamada de picada:

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Portanto, pode-se dizer que uma cobra pica ou morde. Picar é dar uma picada, e picada, em português, significa, entre outros, mordida de inseto ou de cobra.

 

Luiz ou Luís? Com acento ou sem?

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Luiz ou Luís? No Brasil, em 2010, Luiz, com z, era o 11º nome masculino mais comum, e Luís, com s, estava na 13º posição.

É comum se perguntar por que há tantos rapazes de nome “Luiz, com z” e tantos outros cujo nome é “Luís, com s”.

A verdade é que a dupla grafia tem a mesma origem que a de muitos outros nomes e sobrenomes portugueses com duas formas vivas no Brasil – como o sobrenome Souza ou Sousa.

A raiz da questão está no fato de que a língua portuguesa foi uma das últimas grandes línguas a ter normas ortográficas oficiais. Apenas no início do século XX estabeleceu-se uma ortografia oficial. Até então, cada um escrevia mais ou menos como quisesse – não apenas os nomes, mas todas as palavras da língua.

Pouco mais de cem anos atrás, portugueses e brasileiros estabeleceram as bases da ortografia moderna. Padronizou-se, assim, a grafia dos substantivos comuns – estabeleceu-se que se deveria escrever, por exemplo, “mesa”, e não “meza”.

Os portugueses foram ainda além, e estabeleceram uma única grafia correta para todos os nomes e sobrenomes – nem Luis nem Luiz, todo português com um desses nomes deveria a partir de então chamar-se Luís.

Um processo desses era naturalmente mais fácil de ser feito num país com as dimensões de Portugal do que no Brasil, e o governo português levou a sério a questão: não apenas todos os portugueses vivos e já mortos tiveram as grafias de seus nomes “atualizadas”, como, desde então, todo português ou portuguesa apenas pode ser batizado com um nome pré-aprovado, constante de uma lista de nomes autorizados. Qualquer pessoa nascida em Portugal, assim, pode ser batizada “Tiago”, “Matheus”, “Jorge”, “Luís”, mas não “Thiago”, “Matheus”, “George”, “Luiz”.

No Brasil, nunca ocorreu esse processo de padronização forçada dos nomes, e as grafias antigas foram mantidas.

A forma Luiz nunca foi substituída por “Luís” – pelo contrário, “Luiz”, com z, mantém-se como um dos nomes mais comuns de brasileiros, à frente de Luís.

E isso que dentro da conta do nome “Luís” são contados ainda os muitos brasileiros cujo nome é “Luis”, sem acento, forma histórica de Luís – basta lembrar que, até pouco mais de cem anos atrás, não existiam as regras de acentuação que temos hoje. É por isso que outras formas tradicionais – ainda comuns no Brasil – são Sergio ou Antonio, sem acento, enquanto em Portugal esses nomes obrigatoriamente levam acento.

(Pelas regras ortográficas atuais, Luís precisa de acento se se escrever com “s”, mas Luiz, com “z”, não precisa de acento.)

Pelas regras ortográficas de 1943, estabelecia-se que “os nomes próprios personativos, locativos e de qualquer natureza, sendo portugueses ou aportuguesados, estão sujeitos às mesmas regras estabelecidas para os nomes comuns“; com base nisso, os nomes de muitos brasileiros mortos passavam a ser escritos com a moderna grafia portuguesa após a sua morte.

A regra era útil em tempos pré-Internet, em que não havia jeito fácil de consultar se o nome do político ou autor sobre quem se escrevia era “Luiz” ou “Luís”. Hoje em dia, podendo-se facilmente confirmar a grafia corretamente usada por alguém, a regra deixara de ter utilidade para tornar-se um complicador.

Na reforma ortográfica de 1990, essa antiga regra foi, assim, deixada de fora; nas palavras de Evanildo Bechara, “representante brasileiro para o Acordo Ortográfico”, pelas normas ortográficas em vigor, preserva-se a grafia original dos nomes próprios – quem nasceu e morreu Luiz, portanto, continuará a ser Luiz após a morte.