Ter ou possuir? É errado usar o verbo “possuir”? Por quê?

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Muitos manuais ou páginas de dicas de redação recomendam evitar o verbo “possuir”. Isso quer dizer que o verbo “possuir” está sempre errado? Não. O problema está no seu uso indiscriminado.

O verbo “possuir” significa, literalmente, “tomar posse de” ou “ter posse de”. Um espírito maligno possui alguém; um fazendeiro pode possuir muitas terras; etc. Nesta última acepção, é, em geral, sinônimo de ter.

Ainda assim, a recomendação recente de evitar o verbo “possuir” surgiu para combater um modismo que se verificara: que muitas pessoas, querendo escrever mais “bonito” ou “difícil”, vinham simplesmente abandonando o tradicionalíssimo verbo “ter”, substituindo-o sempre por “possuir”.

Em vez de um natural “Não tenho filhos”, ouvia-se um pretensioso “Não possuo filhos”. Em vez da corretíssima frase “O planeta Marte tem dois satélites”, ouvia-se uma quase risível “O planeta Marte possui dois satélites”.

O problema todo do abuso do verbo “possuir” é que o seu uso repetido passou a ser visto como marca registrada de quem queria “falar difícil”, daqueles que evitam construções mais precisas e claras em favor de outras supostamente mais rebuscadas.

Esse uso de “possuir” em lugar de “ter” tornou-se um dos muitos que identificariam os seguidores da crença (equivocada) de que, para bem escrever (ou falar formalmente), é preciso expressar-se o mais diferentemente possível de como normalmente se fala. É essa crença equivocada que leva à maior parte dos erros que vemos em escritos de brasileiros cultos hoje – por exemplo, as abundantes ênclises erradas do tipo “que trata-se”, “não viu-me”, “também sentiu-se”…

A ideia de que seria “chique” substituir um verbo clássico português como “ter” por outro mais longo é o que se vê também entre os mesmos falantes inseguros que trocam sempre o verbo “pôr” por “colocar”, ou o verbo “estar” por “encontrar-se” (“Ele encontra-se ocupado”), etc.

É o mesmo tipo de insegurança, ainda, que levou à criação de modismos como “irá fazer”, “irá criar”; ou que tem levado pessoas a substituírem o tradicional “de férias” por um supostamente mais chique “em férias”, ou mesmo o tradicional fim de semana por final de semana; é a mesma pretensão de se “falar difícil” que leva brasileiros a acharem “feio” escrever as corretíssimas contrações “numa” e “num” e a crerem que é mais correto escrever “em uma” e “em um” (que os portugueses dizem que só se veem no Brasil) – ou que os faz acharem necessário substituir as mais tradicionais “tinha feito”, “tinha sido” por “havia feito”, “havia sido”

É, ainda, o mesmo tipo de insegurança que têm feito falantes cultos evitarem formas preferíveis, como “ter gasto”, “haver pago”, “tinha ganho”, para as substituir pelas até há pouco obsoletas “gastado“, “pagado” e “ganhado.

Em resumo, não é propriamente um erro de português dizer que alguém “possui” tantos filhos; é, na opinião de muitos, um problema de estilo, que chega inclusive a levar à perda de pontos em redações de concursos mais exigentes, por se empregar um verbo menos apropriado do que a solução mais óbvia, simples e precisa: o bom e velho verbo “ter”.

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13 comentários sobre “Ter ou possuir? É errado usar o verbo “possuir”? Por quê?

  1. Boa tarde..
    Gosto de ler as lições sobre LP.
    Detesto esse uso exagerado do v
    “colocar”: já colocou as luvas?; onde está o livro que coloquei aqui?…
    O “pobre” do v pôr está morrendo?
    Outra expressão que me deixa furioso: “en passant”!
    Mas há inúmeras outras!
    V já falou sobre o sujeito pleonástico?
    Temer, ele viajará…
    (É esta a denominação?).

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    • Vamos ver o que lhe diz o Dicionário, mas eu já li que é uma característica típica do português brasileiro falado o tópico-comentário, que chama mais a atenção em frases como a do seu exemplo, em que o substantivo e o pronome que o retoma, ambos sujeitos, estão muito próximos, mas nem tanto quando estão distantes, como em “O meu professor, que é especialista em química orgânica, ele disse que o benzeno faz mal à saúde”.
      É improvável que você não tenha escutado esse tipo de frase, independentemente da região do Brasil onde more e do nível cultural do seu entorno.
      Até na escrita se encontram exemplos, embora seja, a meu ver, de evitar.

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    • Conheci este site hoje e adorei ver aqui escritas coisas que já tinha pensado e com as quais concordo. Mas vc é o primeiro a mencionar esse fenômeno: Na fala está totalmente disseminado entre falantes cultos e já configurou uma prosódia própria que acaba sendo propícia para que se produza o erro de vírgula que isola sujeito de predicado. Observo isso pelo menos há 20 anos. Nos últimos tempos, afetou também as orações relativas: a Maria, ela é uma mulher que ela……O interessante é que de certa forma equivale ao WA na oração japonesa.

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  2. Muito bom texto e muito interessante saber que esta questão tem paralelismo nos dois lados do Atlântico. De notar também que em Portugal cada vez mais se nota influência linguística brasileira, infelizmente não enriquecendo, mas mais no deturpar da língua.
    Tenho estado a reflectir no porquê destas dificuldades, que até numa página que me parece de tanto rigor e isenção acabam por surgir falhas como “(…) evitam construções mais precisas e claras em favor de outras supostamente mais rebuscadas.”. Não seria o objectivo precisamente apontar as tais construções e expressões mais rebuscadas, supostamente mais chiques, mas na verdade menos apropriadas? Cresci a ver telenovelas e a ler versões brasileiras da “Seleções do Readers Digest” (pese embora esse grande pleonasmo), dicionários e livros em geral, e não me lembro de ler “em um/a”, “colocar” ou “possuir” a torto e a direito, etc..

    Em todo o caso, bem haja(m), página adicionada aos “Favoritos” e continuarei a ler artigos a eito.

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  3. Não só concordo com tudo  que você escreve acima, mas são coisas sobre as quais já refletia há um bom tempo:irá fazer, possuir, ênclise indevida, hipercorreção/falar bonito, estranhamento diante de num, etc. Uma pessoa aqui menciona a questão do sujeito seguido de pronome; eu ouço até na relativa: O Paulo, ele é uma pessoa que ELE gosta……, e já está estabelecida a prosódia correspondente a isso, que lembra a função do WA em japonês. Em relação ao “irá fazer”, isso me incomoda há anos, mas já ouvi o Pasquale dizer que é válido (!). Aliás, nunca ouvi o Pasquale dizer que algo está errado. Os jovens jornalistas não conhecem LHE, e escrevem “ela o telefonou”, “eu a dei o dinheiro”. Também acho ridículo “final” de semana. Em relação ao “em férias”, sei que quando começaram a dizer “joias em ouro”, “sofá em couro”, isso foi considerado galicismo. Hoje está em curso um movimento em que EM é usado com infinitivo independentemente da regência do subst/adj/verbo: feliz em fazer, triste em ir, disposição em comprar, aptidão em escrever, etc. Nada me irrita mais atualmente. Os modismos de vocabulário, muitas vezes decalques do inglês, são insuportáveis. Não se dá apoio, só suporte (ing). Ninguém mistura, só se mescla (esp?). Não se exige/requer, só se demanda (ing). Ninguém continua fazendo, só segue fazendo ( esp?). Não se oferece, só se oferta (idiotismo?).

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    • Outra coisa intragável é POR CONTA DE. Além de tirar o lugar de POR CAUSA DE (devido a, em decorrência/razão/função, etc), começa a aparecer com outros significados, espalhando-se como uma praga no estilo do A NÍVEL DE de 25 anos atrás.

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