“Por que” obriga próclise, “porque” também

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Já dissemos várias vezes aqui na página que as próclises erradas são dos erros mais feios cometidos por brasileiros, porque, diferentemente daqueles erros cometidos por quem não teve oportunidade de estudar, usar uma próclise errada é “proeza” cometida apenas por aqueles que tentam “falar difícil” ou “escrever bonito”… e acabam fracassando na empreitada.

É o erro cometido pelo jornalista da Folha de S.Paulo na matéria acima – cuja título é “Por que celebra-se a Páscoa?” – e por todos aqueles que supostamente revisam, editam e aprovam as matérias publicadas. Uma regra básica de colocação pronominal é que a palavra “que” obriga a próclise – isto é, obriga que o pronome venha antes do verbo. A única forma correta é “Por que se celebra a Páscoa?“.

Como a palavra “que” obriga próclise, é errado, portanto, escrever “Foi o que deu-se naquele dia“. A única forma correta, tanto em Portugal quanto no Brasil, é “Foi o que se deu naquele dia“. E a ironia é que todo brasileiro fala naturalmente assim, corretamente. Só erra quem tenta uma inversão para “escrever bonito”.

A palavra que obriga próclise também quando vem sob a forma de por que, em perguntas, e mesmo sob a forma porque, em resposta. Em resumo, em perguntas com “por que” sempre se deve usar o pronome átono antes do verbo.

O mesmo vale para a palavra porque, tudo junto: a palavra atrai obrigatoriamente o pronome átono. Seria errado, portanto, começar uma resposta com “Comemoramos a Páscoa porque recorda-se…“. Não. A única forma correta, em bom português, é “Comemoramos a Páscoa porque se recorda…”. Não é tão difícil, Folha. É só não inventar.

O advérbio “só” obriga próclise (pronome antes do verbo)

Já falamos (aqui e aqui) daquele que deve ser o mais feio dos erros de português: as ênclises (pronome átono depois do verbo, como em “torna-se”) erradas, cometidas por brasileiros que, tentando parecer chiques e usar uma colocação típica do português de Portugal, acabam metendo o pronome após o verbo em casos em que todos os portugueses usam o pronome antes do verbo (“se torna”, como todo brasileiro), porque a gramática obriga a próclise nesses casos.

No português brasileiro oral, praticamente só ocorre uma única colocação espontânea: o pronome antes do verbo (o que se chama próclise): eu me chamo; me diz uma coisaeu te disse.

Já no português de Portugal de hoje (nem sempre foi assim), ocorrem, em aproximadamente metade dos casos, ênclises – isto é, o pronome depois do verbo: eu chamo-mediz-me uma coisaeu disse-te. Mas em cerca de metade dos casos – quando há na frase, antes do verbo, qualquer uma de uma série de palavras que “atraem” o verbo, como conjunções como a palavra “que” ou advérbios como “também” -, os portugueses também usam, obrigatoriamente nesses casos, a próclise: “Não me diga; Eu também me chamo RobertoO que eu te disse foi que não“. Exatamente como os brasileiros.

E são tantos esses casos em que há, na frase, alguma palavra que obriga o pronome a vir antes do verbo, que na prática aproximadamente metade das frases escritas ou ditas por um português usa a próclise – o pronome antes do verbo. Nesses casos todos, a gramática diz que é errado usar a ênclise. É um erro horrível, portanto, escrever ou dizer coisas como *Não diga-me; *Eu também chamo-me; *o que eu disse-lhe.

São erros especialmente feios porque conseguem ao mesmo tempo violar a gramática tradicional, do português de Portugal, e também o português brasileiro oral. Em resumo, são erros feios que só ocorrem quando alguém tenta artificialmente falar “difícil” – e falha.

Um caso desses acaba de ser publicado no jornal O Estado de S. Paulo:

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Advérbios como “só” obrigam que o pronome venha antes do verbo. Todo português, culto ou inculto, escreveria e diria “só se tornou”. Todo brasileiro naturalmente também diria, corretamente, “só se tornou”. Mas o jornalista, querendo escrever de maneira “chique”, acabou cometendo um erro de português.

E mais: palavras como “que”, “onde”, “quando” e os advérbios que obrigam próclise  (“só”, “também”, …) continuam a obrigar próclise mesmo que haja outras palavras entre a palavra atrativa e o pronome.

Ou seja, mesmo no caso abaixo, extraído da Folha de S.Paulo, a colocação está absolutamente errada. A única forma correta, tanto em Portugal quanto no Brasil, nos dois casos, continuaria sendo “se tornou”:

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Nessa frase da Folha de S.Paulo, aliás, o erro é duplo: o “se” deveria vir obrigatoriamente antes do verbo não apenas por causa da palavra “só”, mas também por causa do “que” – palavra que, como já vimos, obriga a próclise.

Pode surpreender muitos brasileiros, que foram mal ensinados na escola, que mesmo havendo vírgula logo antes do verbo, mesmo com uma oração inteira intercalada, o pronome continua devendo vir antes do verbo em casos como este:

Até hoje ele não sabe que o filho, contra todas as expectativas, se divorciou logo depois do casamento.

Sim; apesar de a maioria dos brasileiros cultos e que se creem “bons de português” acreditar que, depois de vírgula, sempre se pode (ou se deve) usar a ênclise, não. Foram mal ensinados na escola. Mesmo em casos como o acima, com uma oração intercalada por duas vírgulas, aquele “que” continua obrigando que o “se” venha antes de “divorciou”. Nada de “divorciou-se”, portanto.

Em outras palavras: na dúvida, é só não inventar: deixe o pronome antes do verbo, como lhe seria natural – “se divorciou“, “se arrependeram“, etc.

E esse erro – esse uso de ênclises erradas quando a norma culta obriga a próclise – é, aliás, muito comum na Folha de S.Paulo, como se vê nos exemplos abaixo, todos tirados do jornal – e todos absolutamente errados de acordo com a norma culta da língua:

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Colocação pronominal com palavras proparoxítonas – proibida a ênclise?

“Tomei conhecimento de uma norma da língua culta, que desconhecia, que proibiria o uso da ênclise com verbos proparoxítonos. É isso mesmo? Fiz uma busca rápida, mas não consegui encontrá-la nos materiais que consultei.”

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Há, efetivamente, numerosas páginas na Internet que, em resumos sobre colocação pronominal, em meio a regras sobre o uso da próclise e da ênclise, trazem a suposta “regra” de que, com formas verbais proparoxítonas, a norma seria a próclise (ver aqui, aqui, aqui, etc.). Assim, segundo essa “regra”, seria incorreto dizer púnhamo-lo, fizéssemo-lo.

Mas, como tantas vezes ocorre, a verdade é que se trata de mais uma mentira da Internet, mais um dos muitos falsos erros de português, os erros “inventados”. Não existe absolutamente nenhuma regra da gramática que proíba ênclise ou próclise com palavras proparoxítonas – aliás, inexiste qualquer regra de colocação pronominal que leve em conta quantas sílabas a palavra em análise tem.

Como tantas vezes se vê por aqui, são inúmeras as mentiras que circulam pela Internet a respeito (não apenas) da gramática da língua portuguesa. São várias falsas regras, disseminadas irresponsavelmente em blogues e páginas até supostamente sérias – mas que não têm absolutamente nenhum respaldo em gramáticas de verdade.

É o caso da falsa regra das proparoxítonas – que aparece até em coluna do consultor de português do grupo Globo, aqui – mas que está absolutamente errada. Segundo qualquer gramática de verdade, portuguesa ou brasileira, é completamente possível a ênclise com formas proparoxítonas – como se vê na conjugação do verbo “pôr” na Gramática de Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras:

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Ou, na mesma Gramática, na conjugação do verbo “apiedar”, que traz “apiedáramo-nos”, “apiedássemo-nos”, etc.:

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A verdade é que formas assim são muito mais comuns em Portugal do que no Brasil, simplesmente porque as ênclises são muito mais comuns em Portugal, enquanto no Brasil a colocação pronominal padrão é a próclise. Mas dizer que palavras proparíxonas obrigam a próclise, ou que existe qualquer regra gramatical que trate disso, é simplesmente mentira.

“Também” exige próclise – em Portugal e no Brasil, em textos formais e informais

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Todo brasileiro e todo português sabe que uma das principais diferenças entre as variantes atuais do português brasileiro e do português lusitano diz respeito à colocação pronominal: enquanto na Idade Média havia grande fluidez e portugueses ora usavam o pronome átono antes do verbo, ora depois, a situação acabou se definindo ao longo dos séculos, mas de modo diferente nos dois países: em Portugal usa-se aproximadamente em 50% dos casos o pronome depois do verbo, mas deve vir obrigatoriamente antes do verbo (“também se manteve”) quando há na frase advérbios, conjunções, etc. Já no Brasil, em situações naturais, o pronome vem sempre antes do verbo.

Assim, todo brasileiro diz “Me dá”, “Nos vimos”, “Me queixei”, enquanto os portugueses dizem “Dá-me”, “Vimo-nos”, “Queixei-me”. Desde o século passado, nossos melhores cronistas, poetas, músicos, etc. usam próclises (pronomes antes do verbo), à brasileira (e que, na metade dos casos, coincidem com a forma “certa” em Portugal).

O mesmo não ocorre, porém, com a maior parte dos jornalistas brasileiros e de todos aqueles brasileiros que, querendo falar “chique” ou “difícil”, tentam imitar a colocação portuguesa – e que, nessa tentativa, sempre acabam cometendo erros ao usar mais ênclises (pronome após o verbo) do que os próprios portugueses.

Justamente por estarem simplesmente tentando imitar uma colocação pronominal que não lhes é natural, o que mais se vê nos jornais brasileiros hoje são ênclises erradas – erradas mesmo pela colocação gramatical portuguesa. Chovem casos como o da foto acima, em que o jornalista escreve “também manteve-se” – erro feio, pois consegue ao mesmo tempo violar a gramática tradicional portuguesa  (que determina que advérbios como “também” exigem a próclise, e não a ênclise) e falha ao não reproduzir o uso natural de nenhum falante, nem português, nem brasileiro.

Os jornalistas brasileiros hoje incorrem no pior tipo de erro gramatical, pois acertariam se escrevessem exatamente como falam (usando a brasileiríssima próclise), mas erram simplesmente por tentar parecer chiques, por tentar falar difícil. Seguindo a concepção vira-lata de que “se eu falo assim, deve estar errado” e de que “quanto mais diferente da fala, mais correto deve estar”, acabam criando ênclises inexistentes em Portugal e em qualquer norma culta da língua portuguesa.

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O mesmo ocorre com orações com a palavra “que“, ou “onde“, entre outras: a gramática portuguesa tradicional obriga, nesses casos, que se use o pronome antes do verbo (igual a como fazemos sempre no Brasil); todo português sempre falará e escreverá “que se deu“, “onde se viu“; mas alguns brasileiros, querendo escrever difícil, acabam inventando construções erradas como “que deu-se“, “onde viu-se” – erradas segundo toda e qualquer gramática portuguesa.

Em outras palavras: se não quiser passar vergonha, na dúvida, não invente; escreva do modo que lhe soar mais natural, do jeito que falaria. Quase sempre, estará certo.

Colocação pronominal: o pior erro é a hipercorreção

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Uma das maiores diferenças entre o português brasileiro falado e o português padrão escrito é a colocação dos pronomes átonos. A colocação pronominal padrão no Brasil, em todos os meios orais, é apenas uma: a próclise ao verbo principal (Ele me viuOs dois se amam; Ele quis me derrubarJá tinha te dito isso).

Já no padrão oral de Portugal (que ainda é, para os gramáticos conservadores brasileiros, o que se deve tomar como a normal culta a ser copiada), os pronomes átonos tendem à ênclise: Ele viu-me;  Os dois amam-se. A colocação do enclítico após o verbo, porém, não se dá sempre: há diversos elementos que, presentes numa frase, fazem que portugueses obrigatoriamente coloquem o pronome átono antes do verbo, exatamente como na colocação intuitiva de todo brasileiro.

Assim, em todas as seguintes frases (que apresentam elementos ou palavras que obrigam a próclise), portugueses, como brasileiros, sempre usarão a próclise:

O lugar onde se conheceram” (e não *conheceram-se);

Nunca me falou desse tema” (e não *Nunca falou-me);

O que se viu foi o contrário” (e não *O que viu-se);

Mas é em casos como esses que se veem com frequência erros grosseiros cometidos, na escrita, por brasileiros cultos – que, por terem internalizado a ideia de que “o bonito é colocar o pronome depois do verbo”, usam a ênclise em casos em que mesmo a colocação culta portuguesa obriga o uso da próclise. É dizer, querendo “fazer bonito”, acabam cometendo erros que não cometeriam se escrevessem exatamente como falam diariamente.

É esse tipo de erro, em que o falante erra por tentar “falar difícil”, ao tentar “corrigir” algo que estava correto, que se chama de hipercorreção – um dos piores tipos de erros existentes, pois são erros que violam ao mesmo tempo a gramática culta tradicionalista e a gramática natural espontânea dos falantes.

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A mesóclise de Temer: não fez sentido, mas quem “importar-se-á”?

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[A mesóclise do título acima – “quem importar-se-á?” está, obviamente, errada – por isso as aspas de ironia. O nível dos leitores habituais da página dispensaria a necessidade de explicitar essa obviedade, mas, como este texto acabou tendo repercussão muito maior que a habitual, acabou atraindo a atenção (e a raiva) de gente que nem mesmo com as aspas entendeu a ironia – precisariam, aparentemente, do ponto de ironia.]

Um dos aspectos que chamaram a atenção no discurso inaugural de Michel Temer como presidente em exercício do Brasil foi o seu uso de uma mesóclise. Colunista da Veja rasgou-se em elogios: “Um discurso impecável na forma e no conteúdo (…) A forma foi impecável. Pela primeira vez em muito tempo, sentia-se a presença de uma autoridade que inspirava respeito. Sem gritos, sem atropelos à língua, sem suor, sem dedo em riste. Temer, com um risinho contido, recorreu até a uma mesóclise“.

Eis, porém, o que efetivamente disse Temer (o discurso inteiro pode ser lido aqui, na página da Presidência da República): “Mas eu quero fazer uma observação. É que nenhuma dessas reformas alterará os direitos adquiridos pelos cidadãos brasileiros. Como menos fosse sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica. Quando me pedirem para fazer alguma coisa, eu farei como Dutra, o que é que diz o livrinho? O livrinho é a Constituição Federal.

Se o uso de uma mesóclise em 2017 enriquece ou não um pronunciamento é ponto aberto para debate. Mas, como todo bom jornalista sabe, nada importa mais a uma frase do que ter sentido. E a frase em questão – “Como menos fosse sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica” – simplesmente não tem sentido, dentro ou fora de contexto. A expressão “como menos fosse” simplesmente não existe. Temer deve ter querido usar a expressão clássica “quando mais não fosse“, que significa, essa sim, “Se por outro motivo não fosse“.

Destacar essa frase específica como prova do “bom português” que “fazia falta a governantes brasileiros” revela, no mínimo, um excesso de boa vontade para com o novo governante em exercício.

Impecável” é, ainda, modo exagerado de qualificar em forma o discurso de Temer, especialmente vindo de alguém que, como o jornalista em apreço, confere importância a erros (do ponto de vista de vista da norma culta tradicional) de concordância, de regência ou de sintaxe – que abundaram no discurso em questão, como se pode ler na sua versão integral, aqui, ou em excertos como: Temos pouco tempo, mas se nos esforçarmos, é o suficiente para fazer as reformas que o Brasil precisa“; “Olha aqui, vocês, que vão ocupar os poderes, exerçam-no com harmonia”; “Por isso, nessa tarde de quinta-feira não é momento para celebrações”; “Todos nós compreendemos o momento difícil, delicado, ingrato que estamos todos passando”; “Bilhões de pessoas assistirão jogos, jornalistas de vários países estarão presentes para reportar o país-sede das competições.”

Pronomes átonos com infinitivos

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O certo é “Sem se privar de nada” ou “sem privar-se de nada“? Tanto faz. Com verbos no infinitivo, é permitida tanto a próclise quanto a ênclise.

Um leitor pede-nos comentar texto, que acaba de ser publicado em outro site, em que uma professora portuguesa afirma que estaria gramaticalmente incorreto o subtítulo do livro acima – “Como emagrecer sem privar-se de nada“. Segundo a professora, misterioras regras gramaticais obrigariam a próclise, e não a ênclise, nesse caso: “sem se privar de nada” é a forma correta, diz ela.

Mas a professora está errada. Como se ensina em qualquer boa gramática, com verbos no infinitivo, sempre se pode usar tanto a próclise quanto a ênclise. Fica ao gosto do falante.

Como ensinaram o gramático português Lindley Cintra e o brasileiro Celso Cunha, em sua Gramática – a mais vendida tanto de um lado quanto de outro do Atlântico:

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É a mesma lição que se lê em todas as boas gramáticas da língua portuguesa – como a Gramática Metódica da Língua Portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida:

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…A Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Rocha Lima:

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… e a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara.

Não dê ouvidos a quem diz o contrário, portanto: com infinitivos, vale a próclise ou a ênclise, ao gosto do falante. É correto, portanto, dizer (e escrever) tanto “para a ver feliz” quanto “para vê-la feliz”; “por medo de o magoar” ou “por medo de magoá-lo“; “Ela começou a falar-lhe”, “Ela lhe começou a falar” ou “Ela começou a lhe falar”; etc.

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