O substantivo “bataclã”, versão portuguesa do Bataclan parisiense (um bataclã: uma boate)

O Bataclan, alvo de atentado terrorista em Paris em novembro de 2015, é uma tradicional casa noturna de espetáculos parisiense fundada em 1865. Em português, existe, com a mesma origem, o substantivo masculino bataclã, registrado no Dicionário Houaiss como sinônimo informal de casa noturna, boate. Um bataclã, no Brasil, pode significar também um cabaré ou uma casa de prostituição.

O nome do célebre Bataclan parisiense vem da antiga gíria francesa bataclan (cujo primeiro registro escrito é de 1761), que significa, informalmente, “coisarada”, “tralha”, “parafernália” ou “turma”, “galera”. É usada, sobretudo, na expressão com que se termina uma frase ou uma enumeração: “tout le bataclan“, que, a depender do caso, pode significar “aquela parafernália”, “aquela coisarada”, “essas coisas todas”, “o pessoal todo”.

A gíria francesa, de provável origem onomatopeica, inspirou também o nome de uma peça de teatro (uma opereta) de Offenbach, chamada “Ba-Ta-Clan“.

Ou a peça de teatro ou a casa noturna parisiense terão levado Jorge Amado a chamar Bataclã o cabaré de seu livro “Gabriela Cravo e Canela”.

A palavra bataclã, substantivo masculino, entrou assim na língua portuguesa, com o sentido popular e informal de cabaré, de onde derivou o significado popular de prostíbulo, assim como o significado registrado por Houaiss, de boate, casa noturna.

Burúndi ou Burundi? Com ou sem acento?

Leitor pergunta-nos se o nome do país africano Burúndi deve ou não levar acento.

Como sabemos, as palavras oxítonas terminadas em “consoante + i” não levam acento: tupi, guaranivivicomifrenesiaquialisucuricolibri; etc.

Levam, por outro lado, acento as palavras terminadas em “consoante + i” que não são oxítonas: táxi, por exemplo; ou cáqui (a cor; reparem na diferença entre cáqui, a cor, que leva acento por ser paroxítona terminada em i; e caqui, a fruta, que não leva acento por ser oxítona terminada em i); ou mapa-múndi.

Da explicação acima, depreende-se, portanto, que Burúndi deve levar acento em português, se a palavra for mesmo pronunciada Burúndi, paroxítona; se, porém, a palavra for pronunciada com sílaba tônica no último “i”, a palavra dispensaria acento, e seria escrita simplesmente Burundi.

Mas qual é, afinal, a pronúncia do nome em português? O grande Houaiss nos esclarece essa:

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A pronúncia variável ou “flutuante” do nome do país – às vezes pronunciado Burúndi, as vezes Burundí em português – pode dever-se (mais que à influência de diferentes línguas, como o inglês, em que se pronuncia Burúndi, e o francês, em que a pronúncia soa oxítona) ao fato de que o nome do país é apenas raramente ouvido em Portugal e no Brasil.

Em Angola, em Moçambique e nos demais países africanos de língua oficial portuguesa, porém, a pronúncia é sempre paroxítona, em consonância inclusive com a pronúncia no próprio país, na língua nacional do Burúndi.

Sendo a pronúncia mais recomendada a paroxítona, o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa usa exclusivamente essa grafia, com acento (Burúndi), assim como o fazem o Governo brasileiro: Dilma recebe Presidente do Burúndi, no portal da Presidência da República; e, no do Ministério das Relações Exteriores: Relações bilaterais Brasil-Burúndi e Nota de maio/2015 sobre a situação no Burúndi.

Membra: o feminino de membro é membra – sim, membra existe em português: a membra, as membras

Na contracapa de um livro de Direito Penal da Editora Saraiva, diz-se que a autora é “membra” do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Membra está certo? Existe mesmo a palavra membra?

Sim, existe em português a palavra membra. A palavra membra está devidamente registrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras (quem quiser, pode clicar aqui para conferir) e em dicionários brasileiros e portugueses – como o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (fotos a seguir):

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Houaiss define membro apenas como substantivo masculino, e traz, como feminino de membro, a palavra membra. Além disso, o Dicionário Houaiss traz também a palavra membra – substantivo feminino – com definição própria, como “mulher que participa de um grupo ou organização”, e afirma que a palavra já tinha uso em textos e livros portugueses publicados no século retrasado.

Hoje, a palavra “membra”, outrora “pouco usada”, ganha cada vez mais espaço: o recente “Dicionário de formas de tratamento – Guia para o uso das formas de tratamento do português em correspondência formal“, por exemplo, recomenda expressamente que, ao se dirigir a membros da Academia Brasileira de Letras ou da Academia Brasileira de Ciências, a forma correta de tratamento formal a ser utilizada é “Senhor Membro”, apenas para homens; e “Senhora Membra” para as mulheres que integram as referidas Academias.

O feminino membra também aparece em todas as nossas principais editoras e veículos de imprensa: por exemplo, n’O Globo: “…a doutora, membra da Sociedade Brasileira de Dermatologia.”; na Revista Veja: “A comentarista independente Anne Gombel, professora francesa e membra da Sociedade Internacional da Menopausa…; no Estado de S. Paulo: “Guga também participou das homenagens a Jennifer Capriati, também nova membra do Hall da Fama“.

Também usam membra, entre outros, jornais e revistas como o Correio Braziliense, O Tempo, Revista Globo Rural, Revista Marie Claire, G1.com (Portal de Notícias da Globo), Revista GalileuRevista CriativaGazetaElPaísRevista Rolling Stone, Revista Leitura, etc.

Numerosos livros também trazem, exatamente como a obra que motivou a pergunta com que iniciamos este texto, a informação de que sua autora é membra de uma ou mais organizações relevantes para o tema tratado – não apenas no Brasil, mas também em Portugal: uma das autoras do Código do IVA e RITI descreve-se como “Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membra do VAT Expert Group da União Europeia.”

A palavra membra também ocorre em outras publicações de Portugal, Angola e Moçambique.

Há ainda ocorrências de menções a “deputada membra do parlamento sueco“, ou a que “a Dinamarca é membra da União Europeia“, ou a que “a Caixa Econômica Federal é instituição membra da Administração Pública”, ou a que (neste caso há milhares de ocorrências) uma mulher é membra de uma igreja ou de uma congregação.

Encontramos ainda a palavra em publicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (“…é membra efetiva da Academia Brasileira de Letras (ABL)“) e da Universidade de São Paulo – USP (“Membra da Academia Brasileira de Letras, foi eleita em 27 de julho de 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda“), bem como na Revista Acadêmica da Faculdade de Ciências do Recife.

Tudo isso – ainda que já não estivesse a palavra membra devidamente registrada no Vocabulário da Academia Brasileira de Letras e em dicionários como o brasileiro Houaiss e o português Priberam – seria já suficiente para declarar que, obviamente, estará errado qualquer um que, em pleno 2016, ainda afirme que “não existe a palavra membra”.

Burma não existe em português: “Burma” é Birmânia (o atual Myanmar)

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Nenhum nome de país sofre tanto nas mãos de tradutores e escritores de legendas quanto o atual Myanmar, antiga Birmânia. Na série televisiva Friends, Phoebe descobre que seu pai havia abandonado sua mãe, e não tinha se mudado para trabalhar como “um cirurgião de árvores em Burma”, como ela cresceu acreditando. Em O Cavaleiro das Trevas, Alfred tenta explicar a Bruce, o Batman, como algumas mentes criminosas funcionam relatando uma história de quando trabalhara em “Burma”. Em ambos os casos, os responsáveis pelas legendas, no Brasil, erraram feio: mantiveram Burma em inglês, por ignorância de que Burma nada mais é que o nome, em inglês, da Birmânia.

Da mesma forma, Burmese traduz-se como birmanês ou birmanesa. A Birmânia (Burma em inglês), no sudeste asiático, é o país atualmente chamado Myanmar (pronunciado “Mianmar”).

Ao colocarem Burma, em inglês, em legendas, os tradutores brasileiros cometem erro equivalente a manter Turkey ou Germany em uma tradução, em vez de “Turquia” ou “Alemanha”. Como acontece com a maioria dos nomes de países em português, a Birmânia levava artigo em português: assim, em vez de “em Burma“, a tradução correta em ambos os casos teria sido “na Birmânia”.

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Corrigindo, portanto: Alfred, mordomo do Batman, trabalhou na Birmânia em algum momento de sua vida; e Phoebe acreditava que seu pai era um cirurgião na Birmânia.

Tuitar, tuíte, retuitar, retuíte: bons aportuguesamentos para tweet e retweet

[Atualização:uma semana após esta nossa publicação, o Dicionário Priberam incluiu os verbos tuitar e retuitar, e os substantivos tuíte, retuíte e tuitaço.]

Já estão no Dicionário Aurélio e no Dicionário Priberam: tuitar (verbo regular: eu tuíto) e tuíte (substantivo masculino).

Tuitar, é claro, significa “publicar em um microblogue“, “postar em uma conta no Twitter“. Independentemente de eventuais ressalvas que se possa ter ao neologismo, construído com base em uma marca registrada, de uma empresa comercial, o fato é que o verbo tuitar, em suas várias conjugações, bem como o substantivo tuíte (plural: tuítes) – sem esquecer ainda os derivados retuitar e retuíte – estão, já há meia década, diariamente em toda a imprensa brasileira, aparecendo também, conforme a compilação abaixo, em Portugal, Moçambique e Angola.

Se – como demonstra a compilação abaixo – até os papas e os aiatolás já estão a tuitar, já passa da hora de nossos bons dicionários incluírem as formas tuitartuíteretuitarretuíte – e quem sabe até mesmo tuitaço (vide Revista Exame: PT convoca tuitaço durante programa do PSDB; Band: Denunciado, Cunha é alvo de tuitaço; etc).

[Atualização:uma semana após esta nossa publicação, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa incluiu os verbos tuitar e retuitar, e os substantivos tuíte, retuíte e tuitaço.]

No Sol (de Portugal), hoje: Que Deus proteja minha irmã e os franceses, tuitou jogador francês;

Na Revista Exame: BBC pede desculpas por tuíte sobre saúde da Rainha; e Estudante que tuitou frases racistas é demitida;

Na Folha de S.Paulo: “Jesus Cristo foi o primeiro a tuitar”, diz Vaticano; A presidente Dilma retuitou “Dilma Bolada”, sua xará virtual;

Na Revista Veja: Band investiga tuíte pedófilo sobre criança do “Masterchef Júnior”; Homem que atirou torta em Murdoch tuitou antes do ataque;

N’O Globo: Cristina Kirchner comemora: “O povo grego disse ‘não’!”, tuitou; Adolescente que tuitou ameaça é criticada; Tuíte de aiatolá ali Khamenei parece mostrar Obama com arma;

N’O Estado de S. Paulo: Expulso de colégio por tuitar palavrõesDeputado reproduziu, em retuítes, mensagens de 15 pessoas com o mesmo mote; Kirchneristas comentam morte de procurador em tuítes;

tvi Portugal: Boston: suspeito tuitou “Mantenham-se em casa”; e “O inevitável tuíte de Obama é considerado um tuíte de ouro

No Público (Portugal): A crise no hotel Rixos acabou – “todos os jornalistas estão fora!”, tuitava o correspondente da CNN, Matthew Chance, que estava entre os 35 estrangeiros detidos no hotel

Jornal de Angola: “…teve o primeiro tuíte escrito pelo papa Bento XVI“; Conta atribuída ao Boko Haram tinha tuítes em árabe e em francês;

A Verdade, de Moçambique: Zayn Malik gera polêmica ao tuitar “#FreePalestine”; “Notícias terríveis”, relatou a embaixadora norte-americana em um tuíte

[Atualização:uma semana após esta nossa publicação, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa incluiu os verbos tuitar e retuitar, e os substantivos tuíte, retuíte e tuitaço.]

O “h” não mudo (ou h aspirado) em português: handebol, jihadista, bahamense, Hanói, bahaísmo, etc.

Um leitor perguntou-nos por que escrevemos Bahamas (nome do país), em português, em vez de Baamas, como fazem os portugueses, “se a letra h inicial ou entre vogais é sempre muda em português?

A verdade é que não há como tapar o sol com a peneira: ao menos no Brasil, já há muitos anos o h não é sempre mudo em português. Em cada vez mais casos, o agá é pronunciado, e não estamos falando apenas de nomes próprios e substantivos comuns estrangeiros (como Hillary, Hilton, hamsterhardware, Honda), mas também de palavras aportuguesadas, incluídas nos principais dicionários brasileiros: handebol; hanseníase; hóquei; bahamense (quem nasce nas Bahamas); jihadista; saheliano; bahaísmo; hobbesiano; hegeliano; etc.

Os portugueses escrevem andebol, porque assim pronunciam o nome do esporte chamado, em inglês, handball. Já no Brasil a grafia sem h inicial jamais terá sucesso, porque o fato é que a pronúncia culta e padrão, de norte a sul do Brasil, é com uma aspiração inicial – a mesma usada em nomes como Hillary e Hilton – e que corresponde, ademais, ao som de uma consoante real e extremamente comum: o inicial, na pronúncia mais comum em todo o Brasil, quase absoluta entre a população jovem.

Temos assim, de um lado, a proliferação no português de empréstimos vindos de outras línguas, muitas das quais têm o som do agá aspirado: hacker, hobby, hostel, husky, hip-hop, hit, holding, hollywoodiano, Hillary, Hilton, Hobbes (e hobbesiano) e outros tantos, do inglês; Honda, Yokohama, hashi (os palitinho de comida japonesa), do japonês; hamster (o animalzinho de estimação), hegeliano (referente a Hegel), hanoveriano, do alemão; hanseníase, do norueguês; hare krishna, do híndi; tahine, jihad, dirham, do árabe; Hanói, capital vietnamita; etc.

De outro lado, temos o fato de que o “r” inicial, no Brasil, passou no último meio século a ser pronunciado exatamente como o “h” aspirado de todas essas línguas (fenômeno que se tornou quase absoluto entre os estratos populacionais mais jovens de todas as regiões do Brasil, que pronunciam rata e marra como /hata/ e /maha/).

Os dois fatos somados – isto é, o fato de a substituição do antigo R “forte” pelo som aspirado se ter tornado a pronúncia “padrão” brasileira, por meio da televisão; somado à percepção de que esse som é o mesmo que o representado por “h” na maioria das línguas estrangeiras – têm levado a uma pronúncia do “h” intervocálico ou inicial em palavras ingressas no português brasileiro nos últimos anos que trazem o som da aspiração em sua forma original.

Assim, a pronúncia padrão brasileira para Bahamas é, inegavelmente, com aspiração medial – e o mesmo vale para o gentílico correspondente, bahamense ou bahamiano. É essa, aliás, a pronúncia recomendada pela própria Academia Brasileira de Letras – que, em seu Vocabulário Ortográfico (o VOLP), indica entre parênteses, quando se pesquisam palavras como bahamense, bahamiano, bahaísmo ou bahaísta, a pronúncia figurada das duas primeiras sílabas: “barra“.

Essa realidade, já aceita pela Academia Brasileira de Letras, marca, sem dúvida, uma inflexão na tradição da língua: o fato de a Academia Brasileira de Letras e muitos dos principais dicionários da língua, como o Houaiss, trazerem a indicação de que “bahaísmo”, “bahamense” etc. se pronunciam como se começasse por “barra” é algo que se opõe à tradição portuguesa, segundo a qual era normal que esses agás, por serem mudos, simplesmente desaparecessem (como no nome da língua swahili, aportuguesado como suaíli, ou no nome do deserto do Sahara, aportuguesado Saara).

Outras palavras aportuguesadas em que o é invariavelmente pronunciado aspirado são saheliano (referente ao Sahel, região do norte da África); hanseníase (doença antigamente conhecida pelo nome, hoje pejorativo, de “lepra”); o esporte hóquei (pronunciado invariavelmente no Brasil com h aspirado, como handebol); além de substantivos e adjetivos derivados de nomes próprios, como hobbesiano, hitlerista, hegeliano, etc.

Embora contrarie a tradição da língua portuguesa, entendemos ser impossível deter esse processo de evolução fonética – normal na história de todas as línguas – e acreditamos que, se aqueles que zelamos pela língua insistirmos que o “h” entre vogais não pode nunca, em em hipótese nenhuma, representar o som aspirado comum à maioria das línguas do mundo, o tiro nos sairá pela culatra: o que ocorreria seria a criação de formas como barramiano, sarreliano, randebol, etc. – da mesma forma que se criou e já se dicionarizou “esfirra” como aportuguesamento de esfiha, o salgado árabe.

A censura imposta pelos puristas, quando da introdução do prato no Brasil, à grafia esfiha em português, e a insistência em que o aportuguesamento correto deveria ser “esfia” (que claramente jamais se popularizaria no Brasil, por não refletir a pronúncia majoritária) levaram à criação do vocábulo “esfirra” (grafia que, embora reflita coerentemente a pronúncia brasileira, não “serve” para portugueses ou mesmos para os árabes – para todos os quais “-irra” e “-iha” representam sons consonantais diferentes).

É preferível, portanto, aceitar a manutenção do “h” aspirado em grafias de palavras novas na língua a introduzir novo fator de instabilidade e divergência entre o português brasileiro e as demais variedades da língua.

Cumpre apontar, por fim, que o mesmíssimo dilema se impôs na língua espanhola; e que, similarmente ao que propomos, a sempre conservadora Real Academia Espanhola recentemente desistiu de “nadar contra a corrente” e passou a admitir que a letra h, que as gramáticas espanholas há séculos ensinavam ser sempre muda em início de palavra ou entre vogais (como em português), pode, sim, representar o som aspirado em certos vocábulos: por exemplo (segundo a Real Academia Espanhola) em Hanói (http://lema.rae.es/dpd/?key=Hanoi) ou em hámster (http://lema.rae.es/dpd/?key=h%C3%A1mster), entre outras palavras que entraram no espanhol vindas de outras línguas, e cuja lista – como em português – só tende a crescer.

Miliardário (e não milhardário), assim como biliardário (e milionário, bilionário, trilionário)

Após entrevistar o presidente da Câmara dos Deputados (de novo ele), a Folha de S.Paulo escreve que o parlamentar contesta a versão da “gente dizendo que tenho bilhão de dólar, que sou milhardário“. A palavra “milhardário“, constante da reportagem, está errada: a grafia correta é miliardário.

Um miliardário é, segundo todos os principais dicionários (Aulete, Aurélio, Houaiss, Michaelis, Porto, Priberam), alguém “com muito dinheiro“, “muitíssimo rico“.

O dicionário original de Caldas Aulete, publicado dois séculos atrás, já trazia o adjetivo e substantivo miliardário como sinônimo de bilionário.

Os dicionários brasileiros incluem ainda a variante biliardário, que pode ser tanto sinônima de bilionário (alguém que tem bilhões) quanto de multimilionário (alguém que tem muitos milhões – seja de dólares, euros, reais, etc.).

Apesar de o número 1.000.000 ser escrito milhão e de seu plural ser milhões (ambos com “lh”), os derivados da palavra “milhão” se escrevem não com “lh”, mas com “li”: milionário (e não milhonário), multimilionário, miliardáriotrilionário, milionésimo, “a milionésima vez”, milionarismo, bilionésima, bilionáriobilionáriabiliardário, biliardária, etc. A única palavra que oferece alternativa é bilião, que também pode ser escrita bilhão.

Uma característica marcante do português modernamente falado em grande parte do Brasil (incluído o Rio de Janeiro, de onde procede o deputado) é a palatalização de consoantes precedidas da letra “i” – não apenas nos casos, já amplamente estudados e analisados,  do “d” e do “t” (que fazem, por exemplo, que a palavra “diurno”, na maior parte do Brasil, possa ser pronunciada “djurno“, ou que a palavra “tiara” possa ser pronunciada “tchara“), mas também no caso do L: embora nenhum dos nossos grandes gramáticos e foneticistas o tenha analisado, é fato que, em grande parte do Brasil (incluindo o RJ), não se faz diferença na pronúncia entre “bilhão” ou “bilião” – ou entre uma “velhinha” (uma mulher velha) e uma “velinha” (uma vela pequena).

Por essa razão, e por ter se tratado de entrevista oral (e não por escrito), não se pode atribuir ao parlamentar erro de pronúncia; o jornal é que, nesse caso, escorregou na grafia da palavra miliardário.

Lages ou Lajes? A cidade catarinense se chama Lajes ou Lages? Moji ou Mogi? Joinvile ou Joinville? Chuí ou Xuí? Paraty ou Parati?

Ao vivo, no Jornal Nacional, William Bonner acaba de pedir desculpas à população da cidade catarinense de Lages por terem mostrado o nome da cidade escrito errado, com “j” – “Lajes” – em reportagem do bloco anterior.

Sim, está errado escrever o nome da cidade catarinense com “j”: o nome oficial do município em Santa Catarina é mesmo Lages, com g (como mostra a própria página da Prefeitura de Lages). Mas, se você pegar o seu dicionário Aurélio, Houaiss ou Michaelis, lá encontrará: lajiano: relativo a Lajes (SC) ou o que é seu natural ou habitante.

Isso quer dizer, então, que os três principais dicionários brasileiros estão errados? Infelizmente, sim. E, infelizmente, há vários outros casos do mesmo tipo de erro nos três dicionários – e todos com a mesma origem.

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O gentílico lajiano e a grafia Lajes remetem a meados do século passado, quando a ortografia brasileira era regida pelo Formulário Ortográfico de 1943 – que, ao dizer que até os nomes próprios deviam seguir a ortografia oficial, autorizava, no entendimento de gramáticos, que se “corrigissem” nomes de cidades brasileiras que supostamente estariam em desacordo com a ortografia oficial do português.

Assim, os gramáticos da época implicaram não apenas com Lages (que, diziam, deveria ser escrita com jota, por derivar do nome do objeto, laje); implicaram também com a gaúcha Chuí (que, segundo eles, deveria ser grafada Xuí, com xis, por ser palavra de origem indígena); com a paulista Mogi das Cruzes (que, segundo eles, deveria ser escrita Moji, com jota, também por vir do tupi), com Joinville, em Santa Catarina (pelos dois LL claramente não portugueses); com Campo dos Goytacazes (que queriam ver “reescrita” como “Goitacases”); com Paraty, que queriam ver “atualizada” a Parati, etc.

Obviamente, os tais gramáticos da época foram no mínimo ingênuos ao supor que poderiam forçar cidades inteiras a mudar seus nomes para atender a um formulário ortográfico. Nenhuma das cidades acima mencionadas aceitou ter seu nome alterado para adequá-lo à nova grafia – no que fizeram, aliás, muito bem, pois as regras ortográficas vão e vêm, e mudam com frequência; ao contrário da história e da tradição associadas aos nomes próprios, que não se sujeitam nem podem se sujeitar aos caprichos das gramáticas.

novo Acordo Ortográfico, por fim, veio substituir o Formulário Ortográfico de 1943, com sua determinação fracassada, e legitimou o que já era a prática: eliminou a antiga regra de 1943 que determinava que os nomes próprios deveriam seguir as mesmas regras de ortografia que os substantivos comuns.

Assim, o certo, hoje, é Lages, com g; Chuí, com ch; Mogi, com g; Joinville, com dois ll; Goytacazes, com y e z; Paraty, com ípsilon. Os atlas, almanaques, enciclopédias, etc., já trazem, há anos, todos essas grafias nessas mesmas formas, que são as únicas usadas pela população dessas cidades e por seus órgãos oficiais, como prefeituras, Câmaras municipais, governos estaduais, pelo IBGE, etc.

Mas infelizmente os dicionários brasileiros até hoje se esqueceram de atualizar essas definições. Por essa razão, criamos o Dicionário de gentílicos brasileiros, com o objetivo de preencher esse vácuo deixado pela falta de atualização dos dicionários tradicionais em matéria tão relevante.

Editado: felizmente, logo após a publicação deste texto aqui na página, o dicionário Houaiss fez a correção de todos os nomes de cidades que até então estavam desatualizados – na versão eletrônica atualizada do Houaiss, Joinvile foi corrigida para Joinville, Xuí para Chuí, Mojimirim para Mogi Mirim, Parati para Paraty, etc., e:

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Para acessar o Dicionário de gentílicos brasileiros, clique aqui.

Campus ou câmpus, com acento? O aportuguesamento já está no Vocabulário Oficial

Campus ou câmpus? Deve-se escrever “o campus”, sem acento, ou “o câmpus”, com acento? E o plural? “Os câmpus” ou “os campi”?

A palavra câmpus designa o terreno e os edifícios de uma universidade. Chegou ao português (e a diversas outras línguas) por meio do inglês, língua que modernamente se ressuscitou, no âmbito universitário das faculdades dos EUA, a palavra latina campus (no plural em latim, campi), que, originalmente, em latim, significava “planície” ou “terreno plano e aberto”.

Em português, a palavra câmpus deve ser acentuada, por se tratar de palavra paroxítona termina em “-us” – como bônus, lótus, ânus, vírus, antivírus, lúpus, Vênus, etc. No plural, não muda: um câmpus, dois câmpus.

A grafia aportuguesada câmpus está já incluída (desde 2012) no Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, e é usada oficialmente pelo Ministério da Educação do Brasil, em substituição às formas inglesas (ou latinas) campuscampi. É também recomendada no dicionário de Paschoal Cegalla (autor da Novíssima Gramática da Língua Portuguesa) e por diversos outros gramáticos e dicionaristas, como Maria Helena de Moura Neves (da UNESP, autora da Gramática de Usos do Português), e Cláudio Moreno (autor do Guia Prático do Português Correto).

As formas aportuguesadas (o câmpus, os câmpus) são também recomendadas pelo Ministério da Educação brasileiro ; pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (ver aqui); pela Universidade Federal Tecnológica do Paraná, por Manual de Redação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e pelas agências de comunicação da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), da Universidade de São Paulo (USP), entre outras.

Também a imprensa brasileira acolhe o uso das grafias aportuguesadas: o Manual de Redação do jornal O Estado de S. Paulo (ver aqui) recomenda explicitamente ouso da forma aportuguesada câmpus (tanto no plural quanto no singular); a palavra também é abonada por veículos como a Revista Veja, o Diário CatarinenseO Globo, Correio Braziliense, o Zero Hora, a Rede Globo, O Tempo, etc.

Senso comum não tem hífen; “senso-comum” está errado

“Senso comum” tem hífen? Não, não tem; escreve-se: o senso comum, sem hífen.

Em “senso comum”, não temos uma única palavra, mas duas, que não têm motivo para serem ligadas por hífen. Há, é certo, entre muitos brasileiros e portugueses, uma certa “mania hifenizadora”: uma tendência a colocar hifens em toda e qualquer expressão feita, com frequência equivocadamente. Há quem escreva, por exemplo, fim-de-semana, décimo-segundo, assembleia-geral, etc. O certo é “fim de semana”, “décimo segundo”, “senso comum”: todos sem hífen.

O propósito original do hífen é marcar o surgimento de um novo termo, formado pela junção de duas ou mais outras palavras, mas – é importante – desde que o novo termo tenha de fato um sentido novo, diferente da simples soma dos sentidos originais das palavras que o compõem. É por essa razão que a palavra ano-luz, nome de uma medida de distância, leva hífen, mas “ano passado” não; ou por que tio-avô, peixe-espada,porta-vozsegunda-feira têm hifens, mas “pai adotivo” ou “pai dedicado”, “peixe cru” ou “peixe frito”, “porta secreta” ou “porta traseira” e “segunda esposa” ou “segundas núpcias” não levam hífen.

É por essa mesma razão que “senso comum” se escreve sem hífen. Por não se tratar de uma palavra, não aparece nos dicionários e vocabulários – com exceção do Priberam, em cuja excelente busca o termo “senso comum” remeterá o consulente, corretamente, para a palavra “senso”, abaixo da qual figuram expressões que usam a palavra: bom senso e senso comum (ambas sem hífen).

Tampouco deve haver polêmica quanto ao plural da expressão – sendo duas palavras separadas, ambas flexionam normalmente: o bom senso, os bons sensos.