Quando usar o hífen? Quando necessário – simples assim.

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Deve ser o desespero para ter mais palavras que os concorrentes. Só isso justifica a mania de certos dicionários brasileiros e portugueses de enfiar hifens completamente desnecessários em expressões que nunca precisaram do tracinho. Hifenizam erradamente expressões e locuções, “criando” novas “palavras”… só que não. Não se criam palavras desse jeito – até porque esses monstrengos cheios de hifens desnecessários acabam nascendo e morrendo sem sair do dicionário: não são realmente usados pelos falantes, que em geral sabem natural e espontaneamente quando usar (e quando não usar) o hífen melhor do que alguns dicionaristas.

O hífen serve, entre outros propósitos, para ligar um substantivo a outro substantivo, em combinações vocabulares: bomba-relógiohora-aula; sofá-cama; Áustria-Hungria; rodovia Belém-Brasília.

Já a combinação de um substantivo com um adjetivo não precisa, em regra, de hífen. A função natural de um adjetivo é exatamente a de qualificar um substantivo.

Por isso, diariamente milhões de adjetivos são justapostos a substantivos, sem que qualquer pessoa de bom senso veja necessidade de ligar o adjetivo ao substantivo por um tracinho. Em regra, um adjetivo e um substantivo só se ligam por hífen quando isso é necessário. O que isso quer dizer é que a função do hífen, nesses casos, é criar um vocábulo novo, formado pela junção de duas palavras que, sem o hífen, não significavam o mesmo que significam “grudadas”.

Se não há absolutamente nenhuma mudança de significado, o hífen entre um substantivo e um adjetivo não é simplesmente desnecessário – é um erro. E há erros desses, invencionices toscas, em dicionários de um e de outro lado do Atlântico.

Há, por exemplo, um dicionário que coloque hífen em “livre comércio“, com o sentido surpreendente de… “comércio livre, comércio sem barreiras”. É, é claro, erro do dicionário – que, por outro lado, não usa hifens em expressões como “acordo de livre comércio” ou “área de livre comércio”, provando a inutilidade do hífen erradamente ali enfiado.

Há quem escreva “assembleia geral“, com hífen, com o significado de uma assembleia que envolve todos os membros – isto é, de uma assembleia que é… geral. Como fica óbvio, assembleia geral não leva hífen, por lhe ser inútil.

É pela mesma lógica que nunca se usará hífen em “professor adjunto“, “secretário executivo“, “diretora executiva“, “professora assistente”, “diretoria financeira“, “cidade natal“, “apresentador mirim“, “hora extra“, “casa civil“, “casa militar“…

(Exceção é o caso do adjetivo “geral”, quando ligado a cargos: por analogia com “secretário-geral” (como, por exemplo, o da ONU), escreve-se também diretor-geral, procurador-geral, diretoria-geral, procuradoria-geral, cônsul-geral, consulado-geral, etc. O fato é que secretário-geral historicamente sempre se escreveu com hífen por decalque do francês – que fica ainda mais evidente na língua inglesa, em que, contrariando a própria regra de colocação de adjetivo antes de substantivo, que é tradicional no inglês, se diz secretary-general, e não general-secretary.)

Pela regra geral de que substantivo com adjetivo não pede hífen, não passa de simples erro que um dicionário hifenize “alto contraste” para indicar um contraste elevado; ou “alto vácuo“, para indicar um vácuo que não é pequeno; ou “alto comando“, para indicar um elevado comando; não é outra coisa senão erro o hífen enfiado na expressão “alto mar“, cujo significado literal é exatamente o de mar alto.

Há dicionários que colocam, erradamente, hífen em “conta corrente“, para se referir à conta bancária correntemente usada por alguém – que, como bem ensina o Aurélio, não deve levar hífen.

Há dicionário que traz hífen em “ano novo“, igualmente sem sentido, ou mesmo em bom senso, o que é simplesmente errado.

Há até dicionário que hifenizam “febre amarela” e “estrela cadente” como se houvesse algum outro sentido possível nesses (e em outros casos), e ignorando que essas locuções já vêm dicionarizadas há séculos em português, desde Moraes, sempre sem hífen – inclusive na colossal e magistral décima edição (1948-1958), o maior dicionário de português até hoje.

Na TV, chega-se a ver legendas em que personagens se cumprimentam com hifens desesperadoramente errados em “bom dia” e em “boa noite“.


Não tem no fundo nada a ver com os casos acima (de justaposições de substantivos + adjetivos), mas outro absurdo surgido recentemente foram os dicionários que, acriticamente, começaram a trazer hifens em tintim (transformando a histórica “tintim por tintim” numa ridícula e injustificada “tim-tim por tim-tim“), ou em nhenhenhém (violentando séculos de história da palavra e dando origem a um monstruoso nhe-nhe-nhém), ou até mesmo em zunzum, escrevendo a palavra, erradamente, como zum-zum – contrariando assim o próprio Acordo Ortográfico em vigor, em cujo texto vem expressamente usada como exemplo a palavra zunzum, sem hífen, como sempre se escreveu em português.

(Recorde-se, a esse respeito, que o Acordo Ortográfico é a única norma legal oficial que rege a ortografia da língua portuguesa no Brasil e em Portugal – a despeito do falso senso comum segundo o qual o vocabulário da Academia Brasileira de Letras teria algum status legal ou oficial  – que, felizmente, como a própria Academia admite, não tem).

“Ano Novo” nunca teve hífen, nem precisa ter

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Como em todas as demais línguas, “Ano Novo” em português não precisa de hífen.

Em português, “ano novo” nunca teve hífen. Em Portugal e nos demais países de língua portuguesa, sempre se escreve assim, sem hifens. Pelas regras ortográficas (ver abaixo), realmente não há motivo para que “ano novo” tenha hífen.

No Brasil, porém, o Aurélio, por lapso, trouxe “ano-novo” como uma expressão com hífen, e os demais dicionários – que, como frequentemente vemos aqui, se copiam uns aos outros, em geral reproduzindo erros – fizeram o que tantas vezes fazem: repetiram o erro.

Já tratamos também da “mania hifenizadora” de certos brasileiros. Mas, como já vimos aqui, existe uma regra básica para o uso do hífen: o de que ele é usado quando é necessário para a compreensão; o hífen não aparece de brinde nem de enfeite.

Uma regra de ouro para o uso do hífen, que funciona na maioria dos casos, é muito mais simples que as mil regrinhas que alguns tentam decorar: se o hífen não faz nenhuma falta, não se usa. E, na língua portuguesa, em geral não é necessário usar hifens para ligar um substantivo a um adjetivo que o qualifique. É por isso que “bom senso” não tem hífen; que “assembleia geral” não tem hífen; que “senso comum” não tem hífen; assim como “gripe aviária”, “segundo esposo”, “bom dia”, etc. – e qualquer outro par normal formado por substantivo mais adjetivo em seus sentidos comuns.

É também por isso que “Ano Novo” nunca levou hífen.

O fato de o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras trazer “ano-novo” com hífen só engana os descuidados: o Vocabulário também traz “bom-dia”, com hífen – e não traz “bom dia” sem hífen. Logo – concluiriam uns -, o certo é escrever “Olá, bom-dia!”? Não, não é. “Bom-dia”, tudo junto, é uma palavra, raramente usada, que significa “o cumprimento pelo qual se deseja a alguém um bom dia”. Mas o Vocabulário não registra “bom dia” sem hífen – porque os Vocabulários só trazem as palavras, separadamente, e nesse caso são duas palavras: “bom” e “dia”.

É o mesmo que ocorre com “livre comércio”, que se escreve sem hífen, mas algumas pessoas erram e acham que deve levar hífen porque o VOLP registra a palavra “livre-comércio” – essa palavra composta, porém, é o que o dicionário Aurélio define como “a teoria que estuda o livre comércio”.

É também, como já vimos, o mesmo que ocorre com “contas-correntes”, que o Aurélio define muito bem como um tipo desusado de livro “onde se registravam as movimentações das contas correntes” de um banco. O fato de existir o antiquado “contas-correntes” não quer dizer que toda conta corrente leva hífen – não leva.

Da mesma forma, Ano Novo – em frases como “Feliz Ano Novo!” – nunca levou hífen em português, nem deve levar. No excelente dicionário da Academia Brasileira de Letras nunca existiu a palavra – nem nos grandes dicionários de Caldas Aulete, nem no Michaelis tradicional, etc. Foi só o Aurélio registrar um “ano-novo” com hífen, retirado de um romance, que os demais dicionários brasileiros copiaram sem nenhum senso crítico a gafe.

Nenhum dicionário de Portugal ou de nenhum dos demais países que falam português escreve “ano-novo”. No novo Vocabulário Ortográfico Comum da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, só existem “ano” e “novo”, e muito bem. Nada de “ano-novo”, que agora alguns dicionários brasileiros tentam dizer que tem sentido diferente de “ano novo” sem hífen. Segundo quem defende a diferença, uma coisa seria a festa realizada na noite do 31 de dezembro – nesse caso se usaria hífen; já “ano novo” sem hífen seria literalmente o novo ano que começa.

Essa suposta necessidade de diferenciação na verdade não existe – quem a defende ignora outra regra básica da ortografia portuguesa: que, como manda o novo Acordo Ortográfico, todas as festas e festividades levam inicial maiúscula.

Portanto, o único argumento que havia para a existência de “ano-novo” com hífen – a suposta necessidade de diferenciar a festividade de um literal novo ano – foi enterrada com o novo Acordo Ortográfico, que marca obrigatoriamente essa diferença pelo uso de maiúscula: Ano Novo é a festividade, enquanto ano novo, sem maiúsculas, é o novo ano literal.