“Através” e “através de” em sentido literal: um falso erro de português

Atualmente é difícil evitar todo o contato – na Internet, em livrarias e até em bancas de jornais – com obras de charlatães da gramática, os inventores de falsos erros de português, que “vendem” (figurada e literalmente) regras de português que simplesmente não existem na gramática tradicional.

Para esses charlatões, que vivem da venda de livrecos (que geralmente trazem títulos ao estilo de “Como falar corretamente“, “Corrija-se!“, “1000 erros de português” e afins), é naturalmente grande o incentivo para inventarem erros – afinal, o seu prestígio e a sua renda vêm justamente da ilusão que creem necessário fomentar entre falantes cultos do português, que tentam enganar e levar a crer que não dominam a gramática básica de sua própria língua.

Um dos tais falsos erros de português que ecoa pela Internet como se verdade fosse é a invencionice segundo a qual a palavra “através” não poderia ser usada em sentido não literal. Sim, há (muitos) brasileiros cultos que acreditam ser errado dizer que algo foi obtido “através” de um processo. No lugar de “através de“, acreditam, ter-se-ia de usar “por meio de“, “por intermédio de“, “mediante“. Já a palavrinha “através“, diz a tal lenda, só se poderia usar em sentido literal, físico.

O que quase todas essas falsas regras de português têm em comum é a falta de qualquer justificativa que as embase: diz-se que é assim porque é assim. E só assim, é claro, pode uma falácia dessas sustentar-se, já que qualquer pessoa que se ponha a buscar uma lógica na tal “regra” acabará por se perguntar por que razão a palavra “através” seria a única palavra de toda a língua portuguesa que não poderia ser usada em sentido figurado, apenas de modo literal.

E o fato é que tal regra – de que “através” não pode ser usada em sentido literal, físico – não existe em nenhuma obra séria. Pelo contrário: todos os melhores autores e os melhores gramáticos do Brasil e de Portugal usam “através de” com o sentido figurado de “por meio de“, e sempre o fizeram.

Aurélio e Houaiss (e todos os demais dicionários) são inequívocos: “através (de)” é um sinônimo perfeito de “por meio (de)”, “por intermédio (de)”.

Houaiss dá exemplos: “educar através de exemplos”; “conseguiu o emprego através de artifícios”. Aurélio também, servindo-se de citações: Foi sempre o mesmo homem honesto, através de anos e anos“, etc.

Os tais criadores de regras divergem sobretudo dos gramáticos de verdade, como o imortal Evanildo Bechara ou Celso Cunha, que usam repetidamente ao longo de suas gramáticas (as duas mais completas e mais vendidas gramáticas de português até hoje) a palavra através exatamente do jeito que a tal lenda urbana diz ser errado.

Como se vê na célebre Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara (2015), da Academia Brasileira de Letras:

Pág. 71: “Em português, como em muitas outras línguas, nota-se uma tendência para evitar o hiato, através da ditongação ou da crase.

Pág. 77: “O sossego do vento ou o barulho ensurdecedor do mar ganham maior vivacidade através da aliteração, nos seguintes versos

Pág. 140: “surgem muitas dúvidas no uso do plural, além de alterações que se deram através da história da língua

Pág. 191: “O tipo “zero determinação” antes do substantivo seguido de “o mais” é menos enfático, e se valoriza através de uma inversão (o mais alto homem)”.

Pág. 457: “Grande é o número de radicais gregos que encontramos no vocabulário português. Muitos deles nos chegaram através do latim e são antiquíssimos.

Da mesma forma, na célebre Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra:

Pág. 18: “É só a partir do seculo IX que podemos atestar a sua existência através de palavras que se colhem em textos de latim bárbaro

Pág. 152: “No primeiro exemplo, o pronome está relacionado com o substantivo por meio da preposição ‘por’; no segundo, o substantivo relaciona-se com o adjetivo através da preposição ‘de’.”

E esse é o uso que fazem da palavra “através” os bons autores brasileiros e portugueses.

Nem mesmo aquele tradicionalmente considerado o mais conservador gramático brasileiro do século passado, Napoleão Mendes de Almeida, condenava esse uso que escritores que não são gramáticos hoje pretendem criminalizar:

“Não se deve cair no exagero de julgar que a locução só é possível quando significa “de um lado para o outro”, “de lado a lado” (Passou através da multidão – Passou a espada através do corpo). Não vemos erro em: “A palavra veio-nos através do francês”, como não vemos na passagem de Herculano: “Através desses lábios inocentes murmuram durante alguns instantes as orações submissas””  (Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de questões vernáculas, 1981, pág. 33)

De modo que, ao encontrar textos ou sabichões que dizem ser errado o uso de “através” em sentido não literal, o melhor é desconfiar de todo o resto que venha da mesma fonte, pois são grandes as chances de estar diante de um dos muitos inventores de falsos erros de português – ou, pior, de um coitado que apenas reproduz acriticamente o que “aprendeu” de um desses charlatões.