Aportuguesamentos: traduzir ou não nomes de cidades e localidades estrangeiras?

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Uruguay“, em português, escreve-se Uruguai; a cidade italiana de “Firenze” em português chama-se Florença; e Alemanha e Berlim são os aportuguesamentos de “Deutschland” e “Berlin“. Mas como escrever, em um texto formal em português, Myanmar? Malawi? Bangladesh?

Muitas pessoas sentem-se inseguras quando precisam escrever em português nomes de países e cidades estrangeiras que não têm uma tradução conhecida em português. A resposta, nesses casos, é: nunca inventar traduções e aportuguesamentos.

Diferentemente das regras ortográficas anteriores, o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa expressamente autoriza o uso das letras “k”, “w”, “y” e de quaisquer combinações gráficas incomuns no português (como “sh”) na escrita de nomes próprios estrangeiros e de seus derivados. O próprio Acordo dá como exemplos Kuwait Malawi, que devem ser assim escritos, e cujos adjetivos pátrios são kuwaitianomalawiano.

O Acordo determina ainda que, “em congruência com” a reinserção das letras “k”, “w”, “y” no alfabeto português, a serem usados em nomes próprios (de pessoas e lugares) de origem estrangeira e em seus derivados, “mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa escrita que figurem nesses nomes”, dando como exemplos “comtista”, “garrettiano”, “jeffersônia”, “mülleriano” e “shakespeariano”.

Essa solução, de um lado, evita o antigo problema de como aportuguesar nomes estrangeiros: um verdadeiro problema, porque, se a solução a ser dada em alguns casos é óbvia (como Jakarta = Jacarta), em outros há inúmeras possibilidades concorrentes, muitas das quais a tal ponto deformadoras que dificultam a identificação do nome original: pense-se nos casos de Bangladesh, Kinshasa, Liechtenstein, Washington, Ottawa ou do próprio Kuwait.

(Especificamente sobre o Kuwait: antes dos tempos do Acordo Ortográfico, quando os puristas entendiam que, se o alfabeto português não tinha as letras “k”, “w” e “y”, puristas perderam tempo precioso imaginando – e defendendo – soluções das mais diversas: Cuvaite, Coveite, Kuait [porque aparentemente, para alguns, o “w” choca mais do que o “K”], Cuaite, Cuuaite, Quaite… O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa veio pôr fim ao dilema, ao estabelecer que Kuwait, em português, é Kuwait.)

De outro lado, essa mudança na normativa oficial da língua portuguesa apenas reflete um entendimento multilateral acerca do tema: desde a década de 1970, a ONU (Organização das Nações Unidas) realiza periodicamente as Conferências das Nações Unidas para a Padronização de Nomes Geográficos (United Nations Conferences on the Standardization of Geographical Names – UNCSGN), nas quais, ouvidos especialistas e técnicos da área da toponímia (a ciência que estuda dos nomes geográficos) de todo o mundo, os países membros da ONU aprovaram resoluções que reconhecem os inconvenientes causados pelo grande número de traduções de nomes geográficos.

Por resoluções aprovadas no contexto da ONU, os países membros da ONU – inclusive Brasil, Portugal e demais países lusófonos – comprometeram-se a restringir o uso de traduções (“aportuguesamentos”, no nosso caso) apenas aos casos de longa tradição e uso corrente e a, ademais, não criarem nem inventarem novas traduções para países ou localidades que viessem a surgir ou que não tivessem tradução tradicional e em uso.

É o que determina, por exemplo, a bastante direta resolução III/17 da Conferências das Nações Unidas para a Padronização de Nomes Geográficos:

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Pela resolução, os países membros da ONU, “reconhecendo ser desejável evitar a criação de novos exônimos” (isto é, traduções de nomes próprios de países, cidades e demais localidades), “recomenda que cada país use na sua língua, para novos países independentes, e para países que adotem novos nomes, até onde for possível, o nome oficial local usado pelo próprio país“.

É por essa razão que em português – do mesmo modo que em inglês, francês, espanhol, italiano, etc. – se têm, nas últimas décadas, adotado nas formas originais (sem tradução) nomes como Bangladesh, Kiribati, Kosovo, Ilhas Cook, Ilhas Marshall, Malawi, Myanmar, Sri Lanka, etc.

Também em consonância com as resoluções internacionais sobre o tema, com  a prática internacional e com o uso majoritário, mesmo as obras de referência (como dicionários e enciclopédias) têm substituído formas aportuguesadas que caíram em desuso pela forma original – como no caso de Dublin, capital da Irlanda, que os dicionários antigos traziam aportuguesada como “Dublim“.

E o que se percebe é que nem o português nem língua alguma sai prejudicada por isso. A língua portuguesa não fica mais ou menos fortalecida por, como fazem todas as grandes línguas de cultura do mundo hoje, usar nomes próprios estrangeiros – seja de pessoas, seja de lugares – em suas grafias originais, com exceção daqueles poucos casos com aportuguesamento tradicional de uso disseminado.

Não apenas a língua não resulta prejudicada, mas as vantagens são evidentes: a invenção, em pleno século XXI, de novas traduções para nomes de lugares representa, como bem notaram os países na ONU, inconvenientes e prejuízos de ordem técnica, financeira e no dia a dia, a viajantes, turistas, estudantes e mesmo ao funcionamento de programas de computador.

No fundo, a obsessão de certos puristas em tudo aportuguesar não é outra coisa que um capricho pessoal, mais que uma real preocupação com a defesa da língua – que não sofre nem sai prejudicada pela incorporação de nomes estrangeiros. Pelo contrário, as línguas mais “vigorosas” do mundo hoje, como o inglês e o francês, incorporam intocados quase todos os nomes estrangeiros, de “Liechtenstein” a “Fukushima”.

E, mais que tudo, essa obsessão aportuguesadora sempre se revelará insuficiente – um trabalho não apenas sem utilidade, mas sem conclusão possível – pois é impossível aportuguesar todos os nomes de todas as localidades, cidades, povoados, rios, estados, províncias, regiões, divisões de todos os países do mundo. Em outras palavras, sempre haverá nomes de localidades traduzidos (como “Alemanha” em vez de Deutschland, “Japão”, etc.) e nomes não traduzidos (como “Washington”, “Miami”, “Buenos Aires”), e aceitar isso é a primeira importante lição que precisa aprender qualquer pessoa que pretenda dedicar-se às ciências toponímicas, ao estudo dos nomes geográficos.

Por mais que se aportuguese, por mais que se inventem milhares de novos aportuguesamentos (insista-se: sem que isso no fim das contas acarrete qualquer utilidade real para os falantes da língua – muito pelo contrário), a verdade é que nunca se sairá da situação que já é a atual: a de coexistência de nomes geográficos aportuguesados com formas estrangeiras usadas sem tradução. Sempre foi assim, é assim em todas as línguas do mundo e sempre assim será. O melhor é aceitar que é assim que as línguas – e o mundo – funcionam, e que assim se está perfeitamente bem.