País transgênero? A antiga Chipre está a virar “o Chipre”

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Alguns jornais brasileiros estão neste momento noticiando o sequestro de um avião “no” Chipre. Seguem comentando a reação do governo “do” Chipre e outros comentários concernentes “ao” Chipre.

Tradicionalmente, porém, a língua portuguesa não admite artigo com o nome do país: os dicionários, enciclopédias e órgãos governamentais do Brasil e de Portugal referem-se, como sempre se referiram, “a Chipre”, à ilha “de Chipre”, à República de Chipre…

A Rede Angola, a Agência Cabo-Verdiana de Notícias, a edição brasileira do El País, a DW em português, o Terra, entre outros, corretamente noticiaram o incidente de hoje em Chipre.

Nas “Cartas” do Padre Antônio Vieira já se lia: “O terremoto de Rimini e mais cidades da Romanha se comunicou por debaixo do mar com as ilhas do arquipélago, porque na mesma hora caíram muitos edifícios em Chipre, e se subverteu com mais de setenta mil almas a celebrada ilha de Có, pátria de Hipócrates e Apeles“.

Não há regra previsível que determine se, em português, um nome de país admitirá ou não o artigo definido – o que rege são o próprio uso e a tradição da língua. Assim, diz-se “no Brasil”, mas “em Portugal”. Embora tampouco seja uma regra fixa, são muitos os países-ilhas que rejeitam artigo: diz-se “em Cuba”, “em Malta”, “em Singapura”, “em Nauru”, “em Aruba”… e “em Chipre”.

A língua evolui, é claro – e seria completamente possível que um nome que tradicionalmente não admitisse artigo passasse a aceitá-lo. Porém, dizer “o Chipre” também contraria a história do português porque, tradicionalmente, Chipre sempre se usou como nome feminino, não masculino: quando necessário o uso de artigo, assim, nossos antigos sempre se referiam à “antiga Chipre” (“O Viajante Universal“, 1798), à “bela Chipre”, “a Chipre de hoje, rebelde e explosiva“, etc.

O atual uso de “o” junto a Chipre talvez se explique por eufonia – ou mesmo por uma contaminação pela palavra “Chifre” (usada, por exemplo, em “o Chifre da África”).

O fato é que mesmo em Portugal, já se nota a “mudança de gênero” e a invasão do artigo definido com o nome dessa ilha-país, berço mitológico de Afrodite: na imprensa portuguesa hoje, O Público escreveu “em Chipre“, mas… “do Chipre“; a RTP Notícias usa “em Chipre” na manchete, mas “no Chipre” na reportagem; o Diário de Notícias fala “de Chipre”, mas se lê “o Chipre” no endereço da reportagem.

Em tempos de transgeneridade (palavra que ainda não está em nossos dicionários…), estamos, talvez, diante do primeiro caso de país transgênero.