“Me deixem escrever português como brasileiro”

Um texto para ser discutido. Professor da Universidade de Brasília, doutor em filologia e linguística, tradutor há décadas, ganhador do maior prêmio de literatura do Brasil, acaba de enviar o seguinte desabafo:

“Deixem eu ser brasileiro!
Sempre fico irritadíssimo quando recebo textos de revisores e, ao reler o que escrevi, encontro uma infinidade de “correções” que representam a obsessão paranoica de expurgar do texto escrito qualquer “marca de oralidade” (como se isso fosse possível), qualquer característica propriamente brasileira de falar e de escrever. É sistemático, é premeditado. Todos os “num” e “numa” que uso são insuportavelmente esquartejados em “em um” e “em uma”, como se essas contrações, presentes na língua há mil anos, fossem algum tipo de vício de linguagem. Me pergunto por que não fazem o mesmo com “nesse”, “nisso” ou com “no” e “na”: não seria lindo ver “em a”, “em o”, “em esse”? Não, seria um nojo! Por que essa perseguição estúpida ao “num”, “numa”? 
O mesmo acontece com o uso de “tinha” na formação do mais-que-perfeito composto: “tinha visto”, “tinha dito”, “tinha falado” são implacavelmente transfiguradas em “havia visto” etc., embora qualquer criancinha saiba que o verbo haver, no português brasileiro, é uma espécie em extinção, confinada a raríssimos ecossistemas textuais… Por que não fazem o mesmo com “tenho visto”, “tenho dito” e “tenho falado”? Já pensaram que vomitivo seria ler “hei visto”, “hei dito”, “hei falado”?
Por que não me deixam escrever “o fato do homem ser mortal” se até o conservador Evanildo Bechara já abonou e abençoou essa contração, visto que falar ou escrever de o é de uma artificialidade mais feia que novela de época?
E quando querem convencer o resto do universo de que existe alguma diferença entre este e esse? Uma diferença que a pesquisa linguística brasileira já mostrou que não existe há mais de um século! Ou que é preciso sempre distinguir onde e aonde (vão ler o Aurélio, por favor!).
É claro que o sintoma mais visível e gritante desse fundamentalismo retrógrado consciente é a putrefacta, abjeta, torva e torpe colocação pronominal. A próclise, isto é, o pronome antes do verbo principal, é veementemente combatida, enxovalhada, humilhada, ainda que ela seja a única regra natural de colocação dos pronomes oblíquos para nós. Isso já era afirmado em textos de João Ribeiro, em 1920! O combate é tão furibundo e insano que até mesmo onde a tradição gramatical exige a próclise ela é ignorada, e os livros saem com coisas como “não conheço-te”, “já formei-me”, “porque viram-nos”, esses filhotes teratológicos da hipercorreção. Isso para não mencionar a pré-cambriana mesóclise, que muitos desses necrófilos ainda acham que é uma opção de colocação pronominal, desprezando o fato de que se trata de um fenômeno gramatical morto e enterrado na língua dos brasileiros faz séculos (se é que jamais foi usada entre nós!).
Só me resta, então, apostrofar:
Senhoras revisoras e senhores revisores, deixem a gente escrever em português brasileiro, por favor! Consultem os seus calendários: estamos no século 21, e não nos brumosos anos de 1500! Consultem seus mapas: estamos no Brasil, e não em alguma esquina úmida e enevoada da (lindíssima) cidade do Porto! Vão estudar um pouco, um pouquinho só, larguem sua religião e pratiquem um pouco de ciência, saiam de sua redoma de vidro impermeável às mudanças da língua e venham aprender como se fala e se escreve o português do Brasil! Leiam alguns verbetes dos nossos melhores dicionários e aprendam que não tem nada de errado em escrever “assisti o filme” ou “deixa eu ver”, que a forma “entre eu e você” não é nenhum atentado contra a língua, nem muito menos “eu custo a crer”, que óculos é substantivo singular, que meia é advérbio flexionado etc. etc. etc.! Esqueçam o que dizem esses charlatães da gramática que não enxergam um palmo adiante do nariz tapado e dos olhos com viseiras! Compulsem o Houaiss, o Aurélio, o novíssimo Aulete! Leiam Luís Fernando Veríssimo, Fernanda Torres e Antônio Prata, nossos melhores prosadores na nossa melhor língua! Ouçam os apelos, que ecoam no tempo, de José de Alencar, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e tantos outros que há tanto tempo pedem, suplicam, rogam, imploram: deixem eu falar e escrever na minha língua, na língua que é a única capaz de expressar meus sentimentos, emoções e ideias! Deixem eu ser brasileiro!”
Opiniões? Comentários? O que pensam a respeito?